Congresso do país norte-americano discute lei para proteger compositores, sobretudo do rap, de abusos; aqui, funk é vítima preferencial
Por Nathália Pandeló, do Rio
Imagem promocional da faixa 'Reunião de Matuto', lançada esta semana por MD Chefe e Major RD com críticas à criminalização do rap. Divulgação
Enquanto o rap é crescentemente atingido por ações judiciais nos Estados Unidos que criminalizam os compositores das músicas pelo conteúdo das suas letras, um projeto de lei tenta protegê-los — e levanta debates não só por lá, mas também aqui no Brasil. A ideia por trás do RAP (Restoring Artistic Protection, ou restauração da proteção artística, em tradução livre) é criar uma norma federal que impeça que composições sejam interpretadas como “confissões” ou “provas” de supostos crimes, ao menos de uma maneira generalizada e sem critério como tem ocorrido até agora.
Apoiada por organizações como a The Recording Academy, o Universal Music Group e a Artists Rights Alliance, a iniciativa legislativa espera blindar o rap contra os preconceitos de muitos conservadores, que o vinculam à criminalidade. Uma situação que, no Brasil, também castiga vários gêneros urbanos, sendo o funk e o rap os principais deles.
Lançado nesta quarta-feira (13), o rap “Reunião de Matuto” faz críticas incisivas à ideia de que o rap tem ligação com o crime e incendeia o debate. Cansados de ver o gênero em que militam ser acusado de susposta "apologia", os associados associados MD Chefe e Major RD criaram uma letra calcada na narrativa de identidade preta, conquistas e ostentação, ao mesmo tempo em que critica políticas públicas e ações vistas como formas de censura cultural. Com dezenas de milhares de audições nas plataformas, a faixa já vem sendo atacada por conservadores em redes.
“O rap tem sido muito atacado só parar gerar mídia. Quero mostrar que o dinheiro que a gente está fazendo hoje vem de muita luta e batalha, e que nós somos homens de negócio. Nossa música é coisa séria”, afirma MD Chefe.
Já Major RD define seu trabalho como o de “repórter da minha área”, dizendo que relata o que vê e ouve no dia a dia de sua comunidade.
POESIA, FILMES E OUTRAS EXPRESSÕES PROTEGIDAS
O texto do PL RAP, nos Estados Unidos, estabelece que expressões artísticas só poderiam ser usadas como prova se a promotoria puder demonstrar que a obra se refere de forma literal e específica aos fatos de um caso criminal, e que esse conteúdo tem valor probatório distinto de outras evidências disponíveis. A regra se aplicaria a músicas, poesias, filmes, danças e outras formas de expressão criativa.
Aqui no Brasil, a liberdade de expressão artística já é garantida pela Constituição, mas encontra limites quando se enquadra em crimes como incitação ou apologia a fato criminoso. E, na prática, a interpretação de onde termina a arte e começa o crime pode variar bastante, como comprovam vários casos nos quais funks e canções de outros gêneros têm sido sistematicamente acusadas de “apologia”.
O VERDADEIRO ALVO
O pesquisador Pablo Laignier, professor do curso de Publicidade e Propaganda do Ibmec no Rio de Janeiro, lembra que a associação automática entre esses gêneros e a criminalidade tem múltiplas camadas.
“O preconceito não é com o funk, é com o funkeiro. Você vai a um casamento de classe média alta, e tem uma hora que toca funk, até os mais pesados, no final da noite, depois que todo mundo já bebeu. E aí, obviamente, tem preconceito de classe, sim, tem preconceito, tem racismo também em alguns casos. Se for uma mulher, muitas vezes tem sexismo. Se for trans, é mais preconceito ainda. Claro que isso mudou nos últimos anos, acho que houve avanços, mas também momentos de recuo, com ondas conservadoras e reacionárias”, avalia Laignier, autor de estudos como “Pedagogias do funk carioca: Deus e o Diabo na terra do som” e “Funk carioca revisitado: alguns apontamentos para uma economia política do gênero”.
Pablo Laignier. Foto: arquivo pessoal
Esse tratamento desigual fica mais evidente quando se observa que outros gêneros musicais já falaram sobre violência, crimes ou comportamentos ilegais sem enfrentar o mesmo tipo de reação. Canções de rock, sertanejo e até brega já abordaram assassinatos, sexualização de menores de idade, crimes “passionais” ou relações problemáticas com drogas, e muitas delas se tornaram sucessos.
“Existem músicas da MPB que falam de criminalidade, romantizam bandidos, e as pessoas não foram presas. Eram de classe média alta, brancos. Então, claro que é preciso ter cuidado, mas é interessante notar como essas músicas fazem sucesso inclusive com os filhos das classes mais altas”, comenta Laignier.
IMPACTO NA CRIAÇÃO
Para além da questão social, há um impacto direto sobre o ambiente criativo e sobre as estratégias de carreira. A produtora executiva e gestora de carreira Sabrina Bueno ressalta que liberdade de expressão não é um conceito absoluto e precisa ser lida à luz do contexto de cada país:
“Um ponto central é que a liberdade de expressão no Brasil tem contornos muito diferentes da norte-americana. Nos EUA, por exemplo, é permitido defender o nazismo; aqui, não. Importar o ‘estatuto’ americano sem ressalvas ignora contextos jurídicos, históricos e sociais distintos.”
Ela destaca que a arte é uma ferramenta poderosa de transformação, mas também traz responsabilidades.
“Apologia ao crime é apologia ao crime. Uma liberdade de expressão plena permite o pensamento crítico e o questionamento das estruturas, mas é importante identificar seus limites para que as expressões sejam conscientes e responsáveis”, pontua a profissional, cuja gestão já impactou a carreira de artistas como Filipe Ret, Banda Biltre e Billy Crocanty e do Projeto Poesia Rústica Mixtape.
Além disso, Bueno publicou sobre música urbana no livro “Produção de A-Z: Manual Prático para Produtores, Bandas e Artistas”. E assinou a cocuradoria do Festival Terra do Rap em 2025.
Sabrina Bueno. Foto: arquivo pessoal
PROJETO EM SÃO PAULO
Em São Paulo, o recente Projeto de Lei 26/2025, de autoria da vereadora Amanda Vettorazzo, reacendeu a discussão sobre os limites da expressão artística. A proposta, diretamente mencionada no rap "Reunião de Matuto", proíbe a contratação, pelo poder público, de artistas cujas obras contenham conteúdos considerados misóginos ou que supostamente façam apologia ao crime. Para críticos da medida, a redação aberta do projeto abre margem para interpretações subjetivas e pode servir como instrumento de censura indireta, afetando especialmente gêneros musicais periféricos. Já seus defensores argumentam que a iniciativa busca impedir o uso de recursos públicos para financiar mensagens que violem direitos fundamentais ou incentivem práticas ilegais.
No Brasil, compositores que retratam realidades sociais duras, como violência urbana e desigualdade, ainda enfrentam interpretações que podem associar sua obra à apologia ao crime. Essa visão mantém certos gêneros à margem, mas há sinais de mudança. Um exemplo é o álbum “Sobrevivendo ao Inferno”, do Racionais MC’s, que foi adaptado em livro e incluído na lista de leituras obrigatórias do vestibular da Unicamp, marcando o reconhecimento de uma narrativa que antes era alvo de estigma.
Esse avanço no reconhecimento da produção artística não elimina a necessidade de compreender como a legislação trata a questão e quais são os seus limites. O advogado Euro Bento Maciel Filho explica que a regra no Brasil é a liberdade de expressão.
“A questão gira em torno de uma linha tênue entre aquilo que se pode considerar a liberdade de expressão artística e aquilo que é proibido por ser considerado como ‘crime’, seja de ‘incitação’, seja de ‘apologia’. Apenas em casos extremos o artista poderá ser responsabilizado criminalmente, pois a regra é a liberdade de expressão e não a censura, nos termos da Constituição Federal”, garante.
Euro Bento Maciel. Foto: arquivo pessoal
O também advogado Gabriel Huberman Tyles reforça que não existe uma definição legal prévia para diferenciar criação poética e incitação ao crime.
“Somente será considerada ‘incitação ao crime’ se o caso for levado ao Judiciário e, após o devido processo legal, o juiz entender que houve ‘crime’ de incitação. Não há como antecipar este juízo. Entendemos que a proibição deve existir, apenas e tão somente, após uma ponderação de valores a ser exercida pelo Poder Judiciário, pois a regra é a liberdade de expressão”, explica.
Gabriel Huberman. Foto: arquivo pessoal
QUANDO A LETRA, DE FATO, VIRA PROVA
No Brasil, já houve situações em que letras de música foram apresentadas como parte do conjunto de provas em processos criminais. Isso não significa que a música, sozinha, possa sustentar uma acusação, mas é um sinal de que o conteúdo artístico pode ser usado para reforçar uma narrativa acusatória.
“O TJ-RJ considerou as letras como ‘meio de prova válido’ quando corroboradas por outros elementos investigativos. A aceitação judicial segue três critérios: correlação temporal entre a música e os fatos investigados, contexto probatório robusto (não apenas a letra isolada) e análise da intenção do autor. Os tribunais têm sido cautelosos, exigindo que a letra seja um elemento complementar, nunca a única prova.”, explica o advogado Kevin de Sousa.
Ele alerta que, quando usado de forma indiscriminada, esse recurso pode gerar injustiças e entrar em choque com princípios constitucionais. Entre eles estão a liberdade de expressão artística (art. 5º, inciso IX da Constituição Federal), reforçada pelo STF no julgamento da “Marcha da Maconha”, que reconheceu proteção especial a manifestações artísticas, mesmo em temas controversos; a presunção de inocência (art. 5º, LVII); e o princípio da proporcionalidade, que exige equilíbrio entre o objetivo da persecução penal e os meios utilizados para alcançá-lo.
Kevin de Sousa. Foto: arquivo pessoal
COMO SE PROTEGER
Atuando na área de Propriedade Intelectual e Direito do Entretenimento, a advogada Victoria Dias defende que a proteção ao artista deve vir de planejamento e respaldo jurídico, e não de limitação criativa.
“Minha orientação jurídica é clara: artistas devem adotar precauções sem autocensura. Recomendo quatro medidas preventivas: Registro da obra no sistema do Ecad com declaração expressa de ‘caráter ficcional’. Documentação do processo criativo (inspirações, referências artísticas, contexto cultural). Assessoria jurídica preventiva para análise de conteúdo em casos sensíveis. Cláusulas contratuais específicas com gravadoras sobre responsabilização. Importante: a autocensura não é a solução. A arte sempre foi transgressora. O que precisa é de blindagem jurídica adequada, não limitação criativa.”
Victoria Dias. Foto: arquivo pessoal
Essa proteção não garante que a obra nunca será questionada, mas aumenta a segurança para o artista e para todos os envolvidos na sua produção e distribuição. Afinal, como bem lembra Sabrina Bueno, a percepção artística está intimamente ligada ao contexto sociopolítico e econômico.
“A arte sempre incomodou governos, polícias e sistemas judiciais. A arte incomoda o poder, pois é ele que determina o valor e valida. O que muda é a forma como cada época decide enquadrar esse incômodo: como crime, como transgressão ou como expressão legítima”, resume.
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