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Ecad pode cobrar por execução pública de música feita com IA, diz decisão liminar
Publicado em 19/08/2025

Desembargador catarinense julga recurso de um parque que se recusa a pagar; especialistas comentam cenário de incerteza

Por Nathália Pandeló, do Rio

A disputa entre um parque temático de Santa Catarina e o Ecad coloca na mesa um tema que parecia distante, mas que já começa a mexer com a rotina de quem usa música em estabelecimentos comerciais: a execução pública (em bares, hotéis, shoppings, academias, festas públicas e outros ambientes) de faixas criadas por inteligência artificial.

O caso envolve a empresa Spitz Park Aventuras Ltda., de Florianópolis. O parque alega que só reproduz músicas geradas pela Suno, uma plataforma de IA baseada nos Estados Unidos, capaz de criar faixas completas a partir de comandos de texto. Segundo a defesa, como essas músicas não têm autores humanos nem estão cadastradas no banco de dados do Ecad, não faria sentido pagar direitos autorais pela execução pública.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina entende de outra forma. Por unanimidade, os desembargadores rejeitaram há alguns dias o recurso e mantiveram a legitimidade do Ecad em cobrar valores pela execução das músicas no parque. A decisão é liminar — ou seja, provisória —, e o caso ainda está longe de uma resolução definitiva.

O QUE DIZ A JUSTIÇA

O relator do caso, desembargador João Marcos Buch, destacou que a simples alegação de que a música foi gerada por inteligência artificial não basta para evitar a cobrança. A decisão liminar reforçou que, segundo a Lei de Direitos Autorais e a jurisprudência consolidada, o Ecad não precisa identificar previamente as obras executadas nem comprovar a filiação dos autores para exigir o pagamento.

Um ponto que pesou no julgamento foi o laudo técnico apresentado pelo Ecad. O documento mostrou “semelhança relevante” entre uma faixa gerada pela Suno e uma obra já protegida, sugerindo que a IA pode ter se apoiado em músicas existentes para criar seu resultado. Para o tribunal, esse indício reforça que a discussão exige análise técnica mais profunda e não poderia ser resolvida por enquanto. O processo não tem data para uma resolução definitiva.

Na prática, os desembargadores fixaram duas teses: não é necessária a identificação prévia de obras ou autores para validar a cobrança de direitos autorais; e a ausência de um autor humano identificado não afasta, por si só, a incidência de direitos autorais.

Mesmo que a decisão final repita a liminar, o caso não geraria jurisprudência para o resto do país. Portanto, casos semelhantes deverão ser julgados individualmente, com potenciais desenlaces diferentes.

O QUE ESTÁ EM JOGO

A decisão reacende um debate que ainda não tem respostas claras: se uma música foi criada por uma máquina, quem seria o titular dos direitos? E, quando o Ecad recolhe valores pela execução pública, para quem esse dinheiro deve ser repassado?

A discussão é relevante porque a execução pública, ou seja, a reprodução de música em ambientes coletivos como bares, restaurantes, lojas e parques, é a base do sistema de gestão coletiva no Brasil. É o que garante remuneração a compositores, intérpretes e editoras musicais, sustentando a cadeia da música.

Manter a cobrança mesmo em músicas de IA reforça a proteção a esse sistema. Mas também levanta dúvidas sobre como será feita a distribuição, já que nesses casos não há um criador humano claramente identificável.

Para Filipe Medon, professor de Direito Civil da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador no Centro de Tecnologia e Sociedade, a decisão mostra a urgência de atualizar a legislação.

“A Lei de Direitos Autorais é centrada em torno da existência de uma figura humana por trás da criação. Então, ela não foi forjada para lidar com esse tipo de situação em que uma máquina está 'criando' algum tipo de conteúdo. Essa ausência de legislação específica me parece urgente. Uma reforma legislativa é realmente imprescindível”, disse.

Segundo ele, hoje coexistem várias interpretações: considerar as músicas de IA automaticamente em domínio público; atribuir a titularidade à empresa desenvolvedora do sistema; ou até ao usuário que insere os comandos, desde que sua participação seja criativa e determinante para o resultado. Nenhuma dessas soluções, no entanto, encontra respaldo atual na lei.

O PROBLEMA DOS TREINAMENTOS DA IA

Outro ponto central está no modo como essas plataformas funcionam. Para criar músicas, elas são treinadas com grandes bases de dados compostas por faixas já existentes, muitas delas protegidas por direitos autorais — e, atualmente, usadas sem qualquer controle ou pagamento por parte das plataformas.

No caso julgado em Santa Catarina, um laudo técnico indicou que uma das músicas da Suno tinha semelhança estrutural com uma obra protegida, demonstrando que a IA não cria do zero, mas se apoia em material protegido que a plataforma simplesmente minerou sem autorização.

Para Filipe Medon, esse uso deve ser tratado como exploração de matéria-prima.

“Ainda que não haja uma lei específica disciplinando isso, a interpretação mais coerente seria considerar que esse conteúdo é um insumo e que, portanto, deveria ser remunerado. Da mesma forma que a água se paga para ser utilizada, se deveria pagar por esse conteúdo que é utilizado para treinar a inteligência artificial”, resumiu.

Em nota enviada à UBC, o Ecad fez coro com ele e ressaltou que a execução pública de música no Brasil continua sendo licenciada conforme a Lei de Direitos Autorais, independentemente de como a obra foi criada. Para a entidade, as ferramentas de IA só existem porque utilizam milhares de músicas feitas por humanos como base de treinamento.

A instituição informou ainda que já adaptou seus formulários de cadastro de obras e fonogramas. Agora, titulares podem indicar se a criação contou com inteligência artificial, se o uso foi total ou parcial, qual ferramenta foi empregada e até o prompt utilizado.

“Essa ação busca dar ainda mais proteção para os cadastros feitos pelos titulares nas associações de música”, explicou o órgão.

Sobre a decisão catarinense, o Ecad avaliou que, embora preliminar, ela reforça que obras geradas por IA não afastam automaticamente a cobrança.

“A decisão reconhece que a criação de músicas e fonogramas por inteligência artificial generativa envolve a utilização de obras protegidas pré-existentes, e que a execução pública de obras e fonogramas gerados por IA não deve afastar, automaticamente, a prerrogativa legal do Ecad de cobrar os direitos autorais.”

O Ecad também informou que os valores arrecadados seguem as regras de distribuição previstas em lei e aprovadas pela Assembleia Geral: 

“Mesmo para obras geradas por IA, a execução pública deve ser licenciada, conforme prevê a legislação brasileira, uma vez que tais músicas são produzidas mediante a utilização de elementos da universalidade de obras originais.”

E PARA OS COMPOSITORES?

Para os compositores, a mensagem da decisão é dupla. De um lado, há uma sinalização de que a execução pública continua protegida, mesmo com músicas criadas por IA. Isso significa que a lógica de remuneração não pode ser afastada apenas porque não há um autor humano diretamente identificado.

"Essa importante decisão do TJSC é esclarecedora: se a IA foi treinada com músicas protegidas, o resultado não é 'do nada', e sim uma derivação dessas obras. A origem que resultou naquele conteúdo importa. Se, no caminho, foram usados elementos de obras protegidas, os titulares originais têm direito a remuneração", diz o compositor Manno Góes, membro da diretoria da UBC, em artigo escrito sobre o tema (leia na íntegra, no final deste texto). "Não se pode ignorar essa proteção, com o risco de se abrir uma porteira para um mercado onde qualquer obra protegida poderia ser triturada, remixada por uma máquina e revendida como “nova”, sem que o criador original veja um centavo. É o mesmo que moer café de uma marca e dizer que virou outro produto só porque mudou a embalagem."

De outro lado, permanecem lacunas importantes. Quem será reconhecido como titular? Como o Ecad fará a divisão de valores arrecadados em casos de músicas de IA? E como garantir que obras usadas como base de treinamento sejam devidamente remuneradas?

Enquanto essas perguntas não têm resposta, a aprovação do PL 2338, o chamado Marco Legal da Inteligência Artificial, pode trazer avanços, principalmente ao exigir transparência sobre as bases de dados utilizadas e prever remuneração aos titulares. Mas, como destaca Medon, a proposta não soluciona tudo.

“O PL 2338 resolve a parte do treinamento, mas não responde sobre autoria nem sobre a destinação do recolhimento feito pelo Ecad”, disse.

A vitória do Ecad em Santa Catarina marca um primeiro passo no debate sobre músicas feitas por inteligência artificial e sua relação com o sistema de arrecadação coletiva. Ela preserva a legitimidade da cobrança, mas também expõe o tamanho das lacunas legais diante de um cenário em rápida transformação.

Vale lembrar que o uso de músicas em lojas e parques é apenas uma das situações em que a execução pública ainda não é plenamente respeitada no Brasil. Enquanto a legislação não consegue abarcar dilemas modernos (como a definição de autoria em criações de IA), ganha força a necessidade de esclarecer como funciona o recolhimento de direitos autorais, não só para compositores e profissionais do setor, mas também para empresários, gestores e todo o público que se beneficia da riqueza da música brasileira.

 

 

LEIA MAIS: Artigo: O pagamento é devido

Por Manno Góes*, de Salvador

 

Há quem acredite que, se a música que toca no seu estabelecimento comercial for feita por uma inteligência artificial, está isento de pagar direitos autorais. Não é bem assim.

Em recente decisão favorável ao Ecad contra um usuário de música que lançava mão desse artifício (utilizar música feita por IA e crer que, por isso, não pagaria direito autoral), o desembargador João Marcos Buch, de Santa Catarina, afirmou que “a tese de que composições geradas por inteligência artificial estariam automaticamente isentas de proteção autoral carece de respaldo legal. A ausência de um autor humano identificável não implica, por si só, a inexistência de direitos autorais ou de obrigações decorrentes da utilização pública dessas obras. Essa discussão se torna ainda mais relevante diante da possibilidade de que tais criações derivem, mesmo que de forma indireta, de obras preexistentes protegidas, o que pode configurar violação aos direitos dos titulares originários.”

Essa importante decisão do TJSC é esclarecedora: se a IA foi treinada com músicas protegidas, o resultado não é “do nada”, e sim uma derivação dessas obras. A origem que resultou naquele conteúdo importa. Se, no caminho, foram usados elementos de obras protegidas, os titulares originais têm direito a remuneração.

Não se pode ignorar essa proteção, com o risco de se abrir uma porteira para um mercado onde qualquer obra protegida poderia ser triturada, remixada por uma máquina e revendida como “nova”, sem que o criador original veja um centavo. É o mesmo que moer café de uma marca e dizer que virou outro produto só porque mudou a embalagem.

Direitos autorais existem para proteger os criadores e para impedir que a criatividade alheia seja explorada sem justa retribuição. O lojista que acha que a IA o isenta de pagar ao Ecad está, na prática, se beneficiando de um insumo protegido para gerar lucro. Ignorar isso não é modernidade, é apropriação.

Estabelecimentos comerciais que pagam devidamente os direitos autorais estão respeitando não somente os compositores, mas também, e principalmente, seus clientes.

 

*Manno Góes é compositor e membro da diretoria da UBC

 

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