Entidades denunciam que documentos-chave da legislação diminuem a proteção do direito autoral, num movimento com potencial reflexo no Brasil
Por Alessandro Soler, de Madri
Cerca de um ano e meio depois de ser aprovada — e festejada pela comunidade criativa —, a Lei de Inteligência Artificial da União Europeia vive um momento complicado. Em seu processo de implementação, três importantes documentos que ajudarão a basear a validação da legislação nos diferentes parlamentos nacionais do bloco trazem trechos que desagradam fortemente aos titulares de direitos autorais. Para observadores do panorama da regulamentação da IA Generativa mundo afora, o mesmo movimento que diminui a proteção aos criadores na Europa pode afetar o Brasil, onde a Lei de IA aprovada ano passado no Senado já dá sinais de desidratação na Câmara dos Deputados.
Entidades como a Cisac (Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores) e o Gesac (Grupo Europeu de Sociedades de Autores e Compositores) se juntaram a cerca de 40 outras num comunicado conjunto, esta semana, denunciando o que chamam de “uma oportunidade perdida de oferecer proteção significativa aos direitos de propriedade intelectual no contexto da IA Generativa.”
Os três documentos e seus pontos problemáticos, segundo as entidades, são estes:
Segundo fontes do mercado, a pressão das big techs e de startups que desenvolvem sistemas de IA sobre a Comissão Europeia, braço executivo do bloco, estaria por trás dessa redação problemática dos documentos. Mas não só: os próprios ventos políticos ultraconservadores, liderados pelos Estados Unidos, poderiam ter tido influência nessa regulamentação que desvirtua o texto original da lei aprovada em março de 2024.
Num comunicado enviado a membros do Conselho de Administração da Cisac, seu diretor-geral, Gadi Oron, denunciou uma tentativa de minimizar as obrigações previstas em lei para as empresas de IA.
“Lamentavelmente, (as mudanças no texto) enfraquecem significativamente as obrigações das empresas de IA, o que é desfavorável (aos titulares de direitos)”, sentenciou.
Enquanto isso, numa carta aberta, entidades que representam uma ampla coalizão de autores, intérpretes, editoras, produtores e outras organizações de titulares de direitos da Europa e do mundo “expressaram formalmente” sua “insatisfação” com a redação atual dos três documentos.
“Apesar do extenso, detalhado e construtivo envolvimento das comunidades de titulares de direitos ao longo de todo o processo, os resultados finais não abordam as preocupações centrais que nossos setores — e os milhões de criadores e empresas ativos na Europa que representamos — têm levantado de forma consistente. O resultado não é um compromisso equilibrado; é uma oportunidade perdida de oferecer proteção significativa aos direitos de propriedade intelectual no contexto da IA Generativa, e que falha em cumprir a promessa da própria Lei de IA da UE”, diz um trecho do documento.
Em outro, as entidades lembram a importância do setor criativo — e em que posição ele está atualmente:
“Hoje, com o pacote de implementação da Lei de IA da forma como está, setores culturais e criativos vibrantes — que respondem por quase 7% do PIB da UE, empregam cerca de 17 milhões de profissionais e têm um impacto econômico maior que as indústrias farmacêutica, automobilística ou de alta tecnologia europeias — estão sendo abandonados em favor dos fornecedores de modelos de IA Generativa.”
À UBC, o advogado Sydney Sanches, com décadas de experiência em direito autoral, corrobora as preocupações da comunidade criativa europeia.
"A expectativa era que fosse dado um tratamento dentro da perspectiva dos documentos anteriores, que indicam uma regulamentação mais severa em favor do interesse dos titulares, mas o que aparenta é que a proteção está, no mínimo, tímida. Quando a gente fala em transparência, num sistema que faz mineração de um volume de dados gigantesco, inclusive com captação parcial, não se pode passar a responsabilidade para o titular. A indústria criativa não tem ferramentas para isso. O que se procura é que quem minera diga o que está minerando. Identificar só 10% gera um problema enorme: não dá para saber exatamente o que está se usando."
REFLEXOS NO BRASIL
Ele reforça a sensação de que um lobby pesado das empresas desenvolvedoras ajudou os ventos da lei, tão elogiada, a virar. Mas não só:
"Pelo que vem acontecendo no mundo, pode ser um momento político também. A gente tem estruturas de pressões internacionais muito grandes, sobretudo dos EUA, defendendo as big techs deles. Há uma fragilização dos organismos internacionais nesse debate", lamenta. "Quando a lei foi aprovada, a orientação política nos EUA e no mundo era outra."
Que lição isso traz para o Brasil, que está em pleno debate na Câmara sobre o mesmo tema?
"A gente está num país polarizado, com poderes públicos muito atacados e pouco avanço para conter isso. Esse mau clima se reflete no debate no Congresso. O projeto, muito elogiado no Senado, está sendo impactado por um perfil muito diferente de parlamentares. O governo, que apoia o projeto, tem dificuldade de ter maioria ali, inclusive dentro da sua própria base, e especialmente num tema diretamente relacionado à regulamentação de plataformas. As pressões aqui também ocorrem", afirma Sanches. "Sempre olhamos a Europa como um bom exemplo. A partir do momento em que há uma fragilização por lá, a proteção ao autor também perde muita força aqui."
PRESSÃO NA UNIÃO EUROPEIA
Alarmadas com o cenário, as entidades signatárias da carta desta semana “conclamam a Comissão Europeia a rever o pacote de implementação, garantindo que a Lei de IA da UE cumpra sua promessa de proteger os direitos de propriedade intelectual europeus na era da IA Generativa”:
“Também apelamos ao Parlamento Europeu e aos Estados-Membros, enquanto colegisladores, que questionem esse processo insatisfatório, que apenas agravará a situação dos setores criativos e culturais da Europa e nada fará para enfrentar as atuais violações da legislação da UE”, finalizaram.
LEIA MAIS: A carta na íntegra
Declaração conjunta de uma ampla coalizão de titulares de direitos atuantes nos setores cultural e criativo da UE sobre as medidas de implementação da Lei de IA adotadas pela Comissão Europeia
Representando uma ampla coalizão de autores, intérpretes, editoras, produtores e outras organizações de titulares de direitos da Europa e do mundo, gostaríamos de expressar formalmente nossa insatisfação com o Código de Conduta GPAI publicado, as Diretrizes GPAI e o Modelo de divulgação sobre os dados de treinamento sob o Artigo 53 da Lei de IA da UE.
Apesar do extenso, detalhado e construtivo envolvimento das comunidades de titulares de direitos ao longo de todo o processo, os resultados finais não abordam as preocupações centrais que nossos setores — e os milhões de criadores e empresas ativos na Europa que representamos — têm levantado de forma consistente.
O resultado não é um compromisso equilibrado; é uma oportunidade perdida de oferecer proteção significativa aos direitos de propriedade intelectual no contexto da IA Generativa e falha em cumprir a promessa da própria Lei de IA da UE.
Lembramos à Comissão Europeia que os parágrafos (c) e (d) do Artigo 53(1) da Lei de IA da UE e as disposições correlatas foram criados especificamente para “facilitar o exercício e a aplicação dos direitos autorais e conexos pelos titulares de direitos, conforme a legislação da União Europeia”, em resposta ao uso sistemático e não licenciado de suas obras e demais conteúdos protegidos por parte de fornecedores de modelos de IA Generativa, em desrespeito às regras da UE. No entanto, o retorno dos principais beneficiários dessas disposições — aqueles que deveriam ser protegidos — foi amplamente ignorado, em contradição com os objetivos da Lei de IA da UE, conforme definidos pelos colegisladores, e em benefício exclusivo dos fornecedores de IA Generativa que continuam a infringir os direitos autorais e conexos para treinar seus modelos.
Em 2024, os setores culturais e criativos europeus acolheram os princípios de uma IA responsável e confiável consagrados na Lei de IA da UE, com o objetivo de garantir um crescimento mutuamente benéfico da inovação e da criatividade na Europa. Hoje, com o pacote de implementação da Lei de IA da forma como está, setores culturais e criativos vibrantes — que respondem por quase 7% do PIB da UE, empregam cerca de 17 milhões de profissionais e têm um impacto econômico maior que as indústrias farmacêutica, automobilística ou de alta tecnologia europeias — estão sendo abandonados em favor dos fornecedores de modelos de IA Generativa.
A implantação de modelos de IA Generativa e sistemas de produção de conteúdo que também se baseiam amplamente na raspagem de dados já está em curso. O dano e a concorrência desleal para com os setores culturais e criativos são visíveis todos os dias. Esses setores devem ser protegidos, pois são os alicerces das nossas culturas e do Mercado Único Europeu.
Queremos deixar claro que o resultado desses processos não representa uma implementação significativa das obrigações do GPAI sob a Lei de IA. Rejeitamos veementemente qualquer alegação de que o Código de Conduta representa um equilíbrio justo e viável, ou de que o Modelo de Divulgação proporcionará “transparência suficiente” sobre a maioria das obras protegidas por direitos autorais ou outros materiais usados para treinar modelos de IA Generativa. Isso simplesmente não é verdade — e representa uma traição aos objetivos da Lei de IA da UE.
Conclamamos a Comissão Europeia a rever o pacote de implementação e aplicar o Artigo 53 de forma eficaz, garantindo que a Lei de IA da UE cumpra sua promessa de proteger os direitos de propriedade intelectual europeus na era da IA Generativa.
Também apelamos ao Parlamento Europeu e aos Estados-Membros, enquanto colegisladores, que questionem esse processo insatisfatório, que apenas agravará a situação dos setores criativos e culturais da Europa e nada fará para enfrentar as atuais violações da legislação da UE.
LEIA MAIS: Uma análise, na época de sua aprovação, sobre o impacto da nova Lei de IA da UE
LEIA MAIS: Implementação da Lei de IA da União Europeia preocupa, e Cisac envia missão a Bruxelas