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Vitor Ramil: processo criativo de 'guri' aos 60 anos
Publicado em 24/08/2022

Gaúcho comenta recém-lançado disco em que musicou poemas de Angélica Freitas, gravado num teatro histórico em obras

Por Ricardo Silva, de São Paulo

Vitor Ramil completou 60 anos este ano e já passou dos 40 de carreira. Mas seu processo artístico continua fresco como o de um eterno guri maravilhado com um mundo cheio de mensagens potenciais. "Nunca me apeguei a mensagens específicas, até porque a arte se abre a muitas interpretações. Gosto justamente de contribuir para que as pessoas deem vazão às suas próprias leituras. Digo o que me vem, que mal sei de onde vem", afirma em entrevista à UBC.

Com uma mistura rica que vai do pop ao samba, passando por sons dos pampas e muito mais, ele lançou recentemente "Avenida Angélica", um disco em que musica 18 poemas da poeta Angélica Freitas, sua amiga e conterrânea de Pelotas (RS). Pensado para ganhar arranjos e banda completa, o disco terminou gravado praticamente com voz e violão, num belo teatro da sua cidade, o Sete de Abril, fechado para obras de restauração. O processo em si teve várias camadas de significado.

"Foi um trabalho solo, gravado e filmado de um jeito que eu nunca fizera antes, num teatro vazio prestes a voltar à vida, que era bem como estávamos nos sentindo (em agosto de 2021). A poesia da Angélica é muito direta, conectada com o real. Um registro com essas características, tão cru, despojado, numa casa de cultura em obras em nossa cidade natal, deixaria tudo mais significativo", lembra o cantor e compositor.

Cercado de música e poesia em sua família (ele é irmão dos também cantores e compositores Kleiton e Kledir), Vitor compõe continuamente há várias décadas, gravou seu primeiro disco, "Estrela Estrela", aos 18 anos, e viveu, desta vez, um processo de criação peculiar: 

"Os poemas musicados são dos dois primeiros livros da Angélica, 'Rilke Shake' e 'Um Útero é do Tamanho de um Punho'. Como a Angélica voltou a Pelotas durante o período em que eu estava compondo, muitas vezes sentamos juntos para fazer eventuais adaptações nos versos. Quando musico poesia, costumo respeitar exatamente o que está escrito, mas, neste caso, a poeta estava ao lado, literalmente, porque era minha vizinha, e se mostrou muito aberta a uma adaptação ou outra nos poemas em função de seguir determinada lógica musical."

Angélica já retornou a Berlim, onde vive, mas fez questão de participar do projeto gravando um vídeo em que lê o poema "Ítaca". Seus textos convertidos em letras de música soam diretos e claros por uma razão simples: como ela mesma diz, “quase tudo eu aprendi ouvindo as canções do rádio”.

Com a amiga Angélica Freitas, autora dos poemas que se tornaram letras. Arquivo pessoal

Pensado para ser simplesmente uma live que atendesse ao contrato que Vitor tinha com a Natura Musical, projeto pelo qual deveria realizar uma determinada quantidade de shows (inicialmente, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e Florianópolis), o show acabou gravado após a feliz constatação de que, mesmo em obras, a acústica do quase bicentenário Sete de Abril continuava perfeita. A onda de frio sobre o Rio Grande do Sul naquelas duas noites da gravação, num teatro com sistemas de calefação e desumidificação desligados, fazia a água literalmente minar das paredes. Mas nada atrapalhou o fluxo de criação, como o artista lembrou num texto especialmente criado para o lançamento do projeto:

"Gosto de estúdio, estou acostumado a gravar na calma. Mas essas duas noites foram de me desafiar, de experimentar, enfim, coisa que eu também adoro. Respirei água e embarquei na vertigem de gravar de olho no relógio e no ritmo das equipes de áudio, filmagem e do próprio teatro. A maioria das canções foi gravada em apenas um take, com eventuais reparos. Poucas foram tocadas duas vezes."

VEJA MAIS: O resultado da gravação em vídeo

A variedade de gêneros que deram forma às canções diz muito sobre a liberdade criativa e as influências estéticas e geográficas dele. Sem reverência particular aos sons do eixo Rio-São Paulo, Vitor foi beber, muitas vezes, na música criada na Argentina e no Uruguai. "São culturas muito presentes, pela proximidade, pelas afinidades históricas. A condição de fronteira é muito enriquecedora para o Rio Grande do Sul. Em 'A Estética do Frio — Conferência de Genebra', escrevi que não estamos à margem de um centro (referindo-me ao centro Rio-São Paulo), mas no centro de uma outra história. Brasilidade e platinidade acabam se combinando naturalmente em nossas produções artísticas e mesmo na receptividade do público", define no papo com a UBC.

Num momento da gravação no Sete de Abril, em Pelotas. Reprodução

Agora que a pandemia arrefeceu, ele deverá levar o show a diferentes cidades, mas não deixa de ter ideias e inspiração para outras canções, outros projetos. "No meu livro 'Satolep', a certa altura um personagem diz: “nascer leva tempo”. Foi assim que sempre me senti, atendendo aos meus impulsos criativos sem nunca me permitir estacionar em algo que, por exemplo, representasse um perspectiva melhor de sucesso ou de enriquecimento, mas que poderia fazer eu me repetir ou empobrecer artisticamente", analisa Vitor, que finaliza: 

"Apostar numa espécie de 'ética da forma, que leva ao trabalho infinito', como escreveu (o filósofo e ensaísta francês) Paul Valéry, é uma postura que exige muita determinação e faz as coisas nem sempre fluírem facilmente. Mas eu não saberia funcionar de outro modo."

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