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E se o roubo de autoria musical de 'Rensga Hits' não fosse só ficção?
Publicado em 30/08/2022

Especialistas ensinam como proteger sua obra; produtor e compositora falam da criação da trilha da série

Por Sérgio Martins, de São Paulo

Alice Wegmann, atriz que vive a protagonista Raíssa, em cena de 'Rensga Hits'. Reprodução TV Globo

Raíssa, personagem principal de "Rensga Hits", seriado atualmente em exibição na plataforma de streaming Globoplay, aproveitou sua cerimônia de casamento para desmascarar o noivo, Rodrigo, e partir para Goiânia a fim de realizar seu sonho de se tornar o novo fenômeno da música sertaneja. Na Meca da bota e do chapelão, a personagem encarnada pela atriz Alice Wegmann vê sua canção "Desatola Bandida", que foi baseada no fracasso de seu noivado, ser surrupiada por um produtor de maus bofes e acabar na voz de Glaucia Figueira, uma estrela em ascensão.

Criada pela dupla Carolina Alckmin e Denis Nielsen, "Rensga Hits" toma liberdades criativas para tratar de um assunto sério: a apropriação indevida da criação alheia. Que, como veremos, é mais comum do que pensamos.

Historicamente, sempre existiu a figura do autor que, diante de uma terra sem lei, surrupia o fruto do esforço de um criador de muito talento e pouca malandragem. Muitas vezes, esse sujeito é um compositor celebrado. Sinhô (1888-1930), nome artístico do carioca José Barbosa da Silva, cunhou a famosa frase “samba é que nem passarinho: é de quem pegar primeiro”, de tanto que foi interpelado por Heitor dos Prazeres (1898-1966) por causa dos constantes “empréstimos” que fazia das composições deste.

Francisco Alves (1898-1952), também chamado de “O Rei da Voz”, era mais cordial. Corria atrás de criações de Noel Rosa (1910-1937) ou de Cartola (1908-1980) para comprá-las ou entrar como parceiro, em troca de uma determinada soma em dinheiro e a promessa de tirar o autor da obscuridade. A prática pode ser – e é – condenável, porém muitos criadores tiraram seus sustentos cedendo a esse artifício.

Nelson Cavaquinho (1911-1986), por exemplo, rumava para a Lapa, zona boêmia do Rio, sempre que precisava de uns caraminguás. Cantarolava algo e, pouco depois, surgia um incauto que lhe propusesse uma “parceria”. Numa dessas vezes, o sujeito que já havia pago por uma canção que não lhe foi entregue escutou o samba de Cavaquinho: “Nelson, essa é aquela que você me prometeu?”, perguntou. “Não, essa é outra. Quer comprar também?", respondeu o sambista de bate-pronto.

A personagem de "Rensga Hits" é levemente baseada em Marília Mendonça, morta num acidente aéreo em novembro de 2021, e que ganhou o epíteto de “Rainha da Sofrência” por causa de suas letras que narravam desencontros amorosos. Marília não chegou a experimentar os dissabores da protagonista Raíssa. Mas sua trajetória artística foi igualmente acidentada. Ela praticamente virou arrimo de família após ter sido abandonada, junto com a mãe, pelo padrasto, obreiro de uma igreja evangélica. Os companheiros do culto apoiaram o traidor, e não a dupla traída.

Marília nem sequer tinha atingido a maioridade quando passou a se apresentar nos botecos de Goiânia em busca de sustento. “Minha mãe comprava uma cerveja e ficava ‘esquentando’ ela até o final da minha apresentação”, lembrou a cantora e compositora à revista Veja numa entrevista. Marília era um talento promissor quando passou a escrever canções para suplas sertanejas como João Neto & Frederico e Henrique & Juliano. Posteriormente, foi convidada a gravar suas próprias criações. Ela chegou a ser sondada para fazer uma pequena participação em "Rensga Hits".

Embora romântica, a visão do criador sertanejo num boteco, compondo em meio a copos de cerveja, destoa da realidade. Hoje existe um esquema praticamente industrial, no qual passam dias na elaboração de um novo sucesso radiofônico.

“Eles têm um foco, vendo a música realmente como seu negócio. Então, quando se reúnem, já vão pensando para que artista vão compor aquele dia. Concentração total”, diz Cléo Barreto, gerente da filial da UBC em Goiás.

O que sim se repete é, quase sempre, a origem humilde dos que se aventuram nesse meio. 

“Existem compositores que eram mecânicos, porteiros e, hoje, estão milionários em pouquíssimo tempo”, explica Cleo. “Contratam consultores para lidar com o dinheiro.”

O método industrial de criar sucessos, contudo, não afasta mentes inescrupulosas do mercado. Mesmo em praças como Nashville (EUA), onde a música country é um negócio altamente lucrativo. Um instrumentista, produtor e autor que, por razões óbvias, pediu para não ter seu nome publicado comentou uma série de infrações cometidas pelos tubarões da indústria caipira americana.

“Muitas vezes, você manda a música a um produtor. Ele diz que vai gravar, pede para um empregado dele criar uma melodia similar e a coloca no disco de seu protegido, deixando o jovem autor a ver navios”, comenta.

Existem, claro, casos de canções protegidas pela propriedade intelectual, mas na maioria das vezes o artista famoso se cerca de advogados melhores. “Muitos lançam mão de um recurso chamado slow walk, que significa atrasar constantemente a ação até que o queixoso fique sem dinheiro e desista do processo.”

“Antes de sair mostrando a composição por aí, é importante que o autor se lembre de gerar provas de que a composição é dele. Essas provas precisam ter uma data que não possa ser alterada”, alerta Bruna Campos, representante da UBC em Campo Grande, criadora do Método Compositor Profissional e sócia-proprietária da Rede Pura Editora.

Raíssa, a autora surrupiada em "Rensga Hits", tinha a letra numa mensagem de WhatsApp. Bruna elenca meios para que o compositor evite ser ludibriado: 

“Os compositores costumam mencionar o registro na Biblioteca Nacional como uma proteção da obra, mas ele não garante a proteção total. Tudo que o compositor puder fazer para se garantir quanto à data da autoria é válido: registro na Biblioteca Nacional, registro no cartório de títulos e documentos, um vídeo não listado nas plataformas de vídeo, áudios, vídeos e textos (desde que nem a data, nem o post, nem o arquivo, possam ser modificados). O compositor que ainda não entende que a composição é um produto de alto valor no mercado age pensando somente no sonho de ter reconhecimento, expondo sua música publicamente sem protegê-la de pessoas que possam tomar a autoria da obra para si.”

Diferentemente do que ocorre na trama da série, a trilha sonora de "Rensga Hits" não tem produtor inescrupuloso. A direção musical ficou a cargo de Dudu Borges, um dos maiores produtores do sertanejo, associado da UBC e responsável por discos de sucesso de Michel Teló, Luan Santana e muitos outros.

“As músicas foram compostas em cima do roteiro e das cenas já escritas. Juntamos quase 20 pessoas numa semana para fazer no meu estúdio”, diz ele. “Fui gravar as vozes pessoalmente dos atores, editei e cuidei de tudo pessoalmente para soar o melhor possível”, completa.

Um dos autores foi Bibi, que também atende por Gabriele Oliveira Felipe e foi assistente de estúdio de Borges por vários anos. A associada da UBC assina as dez composições do projeto em parceria com novos criadores — refletindo a enorme diversidade de estilos, sons e arranjos contida dentro de um mesmo gênero, o sertanejo.

“É uma felicidade fazer parte de um projeto que manifesta a força feminina e faz de nossas vulnerabilidades grandes trunfos na realização de sonhos. 'Pássaro Sem Ninho', por exemplo, escrevi num momento muito especial da minha vida, em que decidia sair da minha zona de conforto para realizar novos sonhos. É um mantra que me lembra do propósito mais bonito do meu ofício e me dá força para seguir realizando aquilo em que acredito e sendo fiel a mim mesma”, diz ela.

Mas, nesse caso, tudo foi registrado como manda o figurino. E é assim que tem de ser.

 

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