Tendência de fazer apresentações que pareçam desenhadas para a plataforma é febre lá fora; chegará ao Brasil?
Por Eduardo Lemos, de Londres
A espanhola Rosalía interage com a câmera durante um show: apresentação para ver pela telinha do celular. Foto: Reprodução/Redes sociais/Ferran Sendra
Primeiro foi a comida. Depois, restaurantes, exposições de arte e até ruas inteiras se entregaram ao conceito de "instagramável". Agora, parece ser a vez de a música ao vivo querer sair bem nas mídias sociais — mais especificamente no TikTok.
Em janeiro passado, uma reportagem do jornal inglês “The Guardian” levantou a pergunta: "estaria o TikTok mudando a forma como as estrelas pop se apresentam?" Segundo a publicação, turnês como "Chromatica Ball", de Lady Gaga, "Solar Power", de Lorde, "Motomami", de Rosalía, e "At Their Very Best", do 1975, "parecem ter sido desenhadas para serem compartilhadas nas redes sociais”.
O jornal argumenta que "muitos dos momentos mais virais do ano no TikTok foram derivados de shows ao vivo: Rosalía mascando chiclete durante sua música “Bizcochito", (Matty) Healy (astro do 1975) tocando incansavelmente sua virilha, Gaga cantando uma balada poderosa enquanto usava uma garra estilo Edward Mãos de Tesoura e de pé em um palco flamejante”.
Uma maior influência das redes sociais no design de shows é natural e mais um elemento na dinâmica artista, internet-público, analisa Dora Guerra, jornalista musical e publicitária:
"Buscar o momento viralizável e a própria imagem ‘instagramável' são preocupações dos artistas já há anos. O que vem acontecendo agora é só uma inteligência no pensar dos shows.”
Segundo Guerra, que também é criadora da newsletter musical “Semibreve” e colaboradora da plataforma Popload, "inevitavelmente os shows vão começar a ter mais estímulos e ficar meio hiperbólicos, talvez para compensar nossa atenção difusa”.
Dora Guerra: shows hiperbólicos para atrair a atenção de uma sociedade dispersa. Divulgação
Cenógrafo com décadas de experiência na música brasileira, Zé Carratu diz que "faz sentido total a cenografia ter a responsabilidade de fazer o show sair bem nas câmeras dos fãs". O profissional, que já assinou projetos visuais de Milton Nascimento, Gal Costa, Emicida, Anitta, Paralamas, Zeca Pagodinho e Paulinho da Viola, entre outros, diz que essa preocupação já existia antes, desde que as mídias sociais tomaram de assalto o cotidiano de todos nós:
"A cenografia sempre vai estar atrelada à mídia do momento, que no caso é o TikTok. Ela tem que ser amigável para esse formato.”
Carratu alerta que há uma diferença entre projetar shows mais amigáveis para Instagram e para o TikTok.
"O TikTok é radical. É um formato em pé e que corta as laterais, por isso um pouco ingrato para se pensar a cenografia. Mas é uma tendência", observa.
No entanto, até aqui nenhum artista brasileiro procurou-o com a incumbência de criar um cenário de show que funcione muito bem tanto para o olhar humano quanto para a câmera do celular. "Não estou fazendo nenhum projeto neste sentido, não caiu essa ficha pesada por aqui. Mas é superpossível que isso não demore para começar.”
André Izidro, CEO e fundador da agência Atabaque, lembra que "historicamente, os artistas brasileiros estão sempre muito conectados com as tendências globais, e bem provavelmente já temos profissionais planejando turnês com esse viés". Mas Dora Guerra diz que é possível mapear alguns sinais de como a estética do TikTok está se infiltrando nos palcos brasileiros.
"Acho que o que mais teve aqui por enquanto foi criar momentos viralizáveis, coisa que a Luísa Sonza fez muito. Ou a dança da Amanda Araújo que viralizou. Tinha um momento que ela chamava alguém da plateia pra dançar, inclusive, e eu vi muito disso aparecer no TikTok. Tem coisas tipo a MC Pipokinha também, que viralizou por conta desses 'momentos' do show com os dançarinos", lista.
André Izidro: exemplos brasileiros começam a pipocar, como Luísa Sonza. Divulgação
Crise financeira e mudança de público
É possível que a crise financeira tenha contribuído para criar uma maior interdependência entre o digital e o ao vivo. Desde 2020, com o aumento dos custos de produção de um evento ao vivo, os ingressos estão mais caros, e é mais difícil tirar as pessoas de casa. Mas um show que vai gerar vídeos incríveis no TikTok pode ser um estímulo extra para o público gastar seu suado dinheiro, o mesmo critério que faz com que algumas pessoas escolham ir a um café "instagramável" não apenas pela qualidade do seu capuccino, mas também pelas imagens que poderão registrar em seu celular.
Outro fator é a mudança de perfil do público que frequenta os shows. Segundo a plataforma britânica CM, especializada em comportamento de consumidores no Reino Unido, "a geração Z está comparecendo a mais eventos ao vivo do que as outras faixas etárias". Em seu relatório, que leva em conta pesquisas realizadas em 2022, a CM aconselha os artistas a "engajar os participantes antes, durante e depois do evento. Não faça as coisas como sempre foram feitas - agora é a hora de otimizar, evoluir e construir a sua marca".
A conclusão do estudo britânico é parecida com a análise de André Izidro sobre os benefícios de construir um show visualmente atraente:
"Hoje em dia, é necessário planejar pensando nas reverberações de redes sociais. O consumo de conteúdo nas telas, principalmente vídeo, é muito forte e um caminho sem volta. Se você constrói um conteúdo que trabalha pra você, mesmo quando não está acontecendo o show, ele tende a reverter em mais curiosidade para a experiência única, que é o ao vivo.”
A simbiose entre TikTok e shows pode ter outras consequências. Uma delas, destaca Dora Guerra, é inverter a lógica de divulgação de uma música inédita. Normalmente, uma nova faixa é primeiro lançada nos streamings, para que o público se familiarize com ela e, depois, possa cantá-la nos shows.
"A Rosalía fez [o contrário] com ‘Despechá’: tocou uma música no palco, esperou viralizar e, depois, lançou. No Brasil, a Lud está fazendo isso com ‘Sou Má’", exemplifica Guerra.
Efeitos colaterais
"Hoje, uma boa parte das pessoas assiste a um show com o celular na mão, filmando. As pessoas estão cada vez mais com o olho acostumado a enxergar as coisas pelo telefone", atesta Zé Carratu.
Zé Carratu: cenografia já começa a se adaptar. Divulgação
A observação do cenógrafo levanta um paradoxo: se o show é tão impactante visualmente que o público fica mais preocupado em filmar e postar, há um natural esvaziamento da experiência de se estar fisicamente em um show, o que impacta o próprio artista, que sente a desatenção no ar.
"É um desafio que já existia antes, pelo menos agora os artistas estão tentando usar isso ao próprio favor", analisa Dora Guerra. "Eu sou meio otimista nesse sentido, porque acho que todo mundo ainda vê o show como uma experiência única e efêmera, principalmente pós-pandemia. As pessoas ainda não se preocupam tanto em gravar quanto se preocupam em estar lá. E os vídeos viralizando fazem com que mais gente queira estar lá, queira viver a experiência, até quem não tinha interesse especificamente naquele show.”
Para André Izidro, é impossível controlar o comportamento do público, mas há estratégias que podem ser usadas.
"O artista pode planejar e controlar o que será entregue. Ele pode provocar para (que haja) menos uso do celular ou pode se apropriar do uso massivo a seu favor. Ele pode até tentar criar uma experiência para o não uso. Só não dá pra se incomodar caso o fã use", finaliza.
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