Lendário produtor dá entrevista ao podcast Papo com Clê, parceria de Clemente Magalhães com a UBC, recheada de momentos impagáveis
Do Rio
Fotos de Isabela Espíndola
O podcast Papo com Clê, produzido por Clemente Magalhães em parceria com a UBC, teve nesta terça (4) um convidado mais que especial: o produtor musical Guto Graça Mello, produtor de trilhas sonoras míticas da TV Globo ao longo de décadas, histórico diretor artístico na Som Livre, compositor de canções para Elis Regina e Nara Leão, produtor de discos para meia MPB e criador de música original para cinema, teatro e publicidade. Numa conversa de quase três horas de duração, ele relembrou alguns dos momentos mais marcantes de sua carreira — que se entrecruzam aos de outros medalhões da nossa música —, analisou o mercado contemporâneo e contou histórias impagáveis.
De uma fuga do México em 1970, numa história digna de filme de espionagem misturada a comédia dos Trapalhões, passando pelo início como músico, quase por acaso, em programas da TV Tupi e da TV Continental, e por seus problemas com as drogas nos 1980, Mello “abriu o verbo”, como definiu, com inéditos nível de detalhes e sinceridade.
Falou sobre a trágica morte do irmão, o ator, cantor, compositor e apresentador de TV Paulo Graça Mello, sobre o salto (internacional, inclusive) da sua carreira como músico depois desse evento, sobre amigos que se foram — Robson Jorge, Lincoln Olivetti — e também sobre os que permanecem, como José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, e Mariozinho Rocha.
“Sou um cara de sorte. Minha história passa sempre por situações-limite”, definiu, reafirmando em vários momentos do papo a sorte que teve em períodos fundamentais da sua trajetória: “Parece frase feita, mas na boa, eu acredito demais nisso: Deus está sempre presente quando há um momento de criação. Deus ilumina a arte."
Abaixo, um resumo dos melhores momentos da conversa.
VEJA MAIS: A entrevista completa no canal Corredor 5, de Clemente Magalhães, no YouTube
QUANDO TUDO COMEÇOU
“A música me pega na infância”, descreveu, antes de contar os primeiros e difíceis anos da sua vida, em que a mãe teve que se virar para criá-lo (e também aos seus irmãos), já que o pai saiu de casa quando Mello tinha 1 ano de idade. Uma das maneiras de a mãe fazer dinheiro era montar um bar improvisado em casa, onde tocavam conjuntos vocais. “Eu, menino pequeno, ficava lá sentado vendo os caras ensaiarem. Meu irmão, Paulo, era cantor num conjunto chamado Os Anjos do Inferno, eu ficava fascinado com tudo aquilo”, descreveu. “Passaram os anos, e eu via o Paulo, que era um galã, tocar violão. Eu era isso aqui de magro e muito tímido. Foi quando pensei 'acho que o caminho para a minha timidez é o violão, é tocar’. Eu devia ter 14 anos. Sempre fui obsessivo: me tranquei no quarto, peguei o violão do meu irmão, que me ensinou quatro acordes, e fiquei estudando durante um ano, sozinho, aprendendo aquilo.”
Uma namorada que era sobrinha de Flavio Cavalcanti, então um dos principais apresentadores da TV brasileira, o levou para tocar violão no programa do tio, na Tupi. "Toquei bem, tipo virtuose. Ele me perguntou o que eu fazia, e eu só estudava, mas disse que dava aula de violão. Ele pediu para eu dar o telefone, e eu dei, no ar, na TV.”
Quando chegou em casa, a mãe estava irada: “Fechei 40 alunos para você. Esta %&$# aqui não parou de tocar”, ela disse, como lembrou Mello às gargalhadas. Nascia um insólito professor de violão que teve, anos depois, entre suas alunas, uma jovem Marina Lima.
O ENCONTRO COM O MERCADO
Aos 16 anos, Guto Graça Mello já era amigo de Mariozinho Rocha, que viria a ser outra figura lendária da produção e da curadoria musicais no Brasil. Ambos integravam a “Turma do Leme”, um grupo de amigos ligados à música que viviam ou frequentavam esse bairro do Rio de Janeiro, e que incluía também Marcos Valle. Um dia, Mello e Rocha compuseram uma música juntos. Se chamava “Manifesto”. “O meu irmão, o Paulo, o galã, que vivia de bicos, tinha conseguido um horário na TV Continental, que dava traço de audiência, e queria fazer ali uma cópia do programa ‘Almoço com as Estrelas’ (da TV Tupi). Me levou para tocar lá, para eu mostrar a música. Cantamos e tocamos o ‘Manifesto’. Dez minutos depois, meu irmão anunciou no ar que a Elis Regina tinha ligado para a TV. Ela deu ordem para a gente tocar a música de novo. Tocamos. Ela pediu para repetir mais ou menos oito ou dez vezes a música, queria aprendê-la de casa, ouvindo a gente pela TV.” Na semana seguinte, Mello voltou ao programa. De repente, entraram no estúdio Elis Regina, Ronaldo Bôscoli, MPB4 e uma porção de outros medalhões. “Ela queria que essa gente nos conhecesse”, recordou Mello, relembrando a importância de Elis para esse começo da sua carreira profissional: além de tê-lo “amadrinhado” sem saber, ela também gravou “Manifesto”.
ANDANÇAS
Em 1969, quando tinha 21 anos, Mello perdeu o irmão Paulo num trágico acidente de carro. Pouco depois, recebeu em casa uma visita inesperada: “Era um empresário mexicando que se apresentou dizendo que tinha uma casa noturna com quatro andares, várias pistas. Ali tocavam grupos de tchecas, de chinesas… E ele queria que fôssemos para lá. Quase de um dia para o outro, entramos num avião, eu e meu grupo, o Vox Populi, e fomos. Ali começou uma temporada de três anos pelo México.” Uma noite, tocando numa casa de shows na capital do país, eles receberam um convidado especial. “O João Gilberto, que estava por lá, ouviu que tinha um grupo brasileiro e foi nos ver. Foi todas as noites nos ver naqueles dias. A gente fazia três shows por noite. E, depois, íamos para a casa dele para jogar pingue-pongue e tocar. Nessa época, eu conheci os pés da Miúcha. Ela estava sempre no quarto, nunca saiu, mas vi os pés dela”, riu o produtor.
O toque surrealista da estada no México, porém, é outro. Um dos membros da banda, Fernando Leporace, se envolveu com uma mulher que, na época, era descrita como a “amante oficial” do então presidente mexicano, Luis Echeverría Álvarez. No dia da final entre Brasil e Itália, durante a Copa de 70, essa mulher os visitou e contou que o manda-chuva havia descoberto tudo. “Ele mandou matar a banda toda. Foi pior do que pânico, pânico é uma palavra pequena para descrever. Ela disse ‘fujam do país, mas nada de aeroporto ou rodoviária’. Pegamos nossos instrumentos, um pouco de roupa. Nosso roadie, o Abel, sugeriu um ônibus pobrezinho, usado pela população local, e fomos nele da Cidade do México a Tijuana. Foram dois dias inteiros atravessando o deserto de Sonora.”
Como descreveu Mello na entrevista a Clê, a entrada nos Estados Unidos foi mediada pelo cônsul brasileiro em Los Angeles. Mas, em vez de retornar ao Brasil, começou uma nova etapa: um ano e meio pelos EUA tocando na noite, em bailes de carnaval de brasileiros, vivendo outras aventuras - entre elas, começar a tocar com Edu Lobo, que andava por lá e, na época, era produzido por Sérgio Mendes. A parceria levou Guto Graça Mello a tocar com Lobo no Japão — e a outras aventuras.
O INÍCIO NA TV GLOBO
Depois de fazer a trilha sonora de um filme americano — “não um filmaço, um filme B”, como brincou —, e ter a sorte de a produção acabar vista pelo então diretor-geral da TV Globo, Walter Clark, Mello foi chamado para trabalhar na emissora. Ali, começou com trabalhos menores até que, em outra “situação-limite”, como lembrou, se aproximou de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, o que mudaria completamente sua trajetória. “Foi o maior mestre que eu tive. Dei muita sorte com ele”, disse o entrevistado. “O que eu sei de televisão aprendi com ele.” A situação à qual ele se refere se deu após ter sido convidado por Nelson Motta para fazer juntos a trilha sonora da novela “Cavalo de Aço”. “Era uma trilha horrorosa, nunca mais tive coragem de ouvi-la”, riu-se. “Eu não sabia fazer trilha! Um dia, estava trabalhando ali na ilha de edição quando o Boni circulou uma mensagem dizendo que a trilha era uma merda. Eu, garoto novo, ofendido, fui lá na sala dele. Estava possesso, disse um monte de besteiras. Ele respondeu ‘quero que você venha trabalhar comigo’."
UM MOMENTO FANTÁSTICO
Numa ocasião, Boni o colocou numa sala com outros medalhões, jogou uma revista “Manchete” sobre a mesa, começou a folheá-la e descrever um novo programa que havia imaginado: uma capa com uma mulher bonita ou um fato jornalístico relevante, uma reportagem médica, uma reportagem de costumes, outra sobre um fato cultural relevante, algo de política… tudo junto e misturado. A Guto Graça Mello foi dada a tarefa de viajar a Nova York para ver todos os musicais que pudesse, ao longo de duas semanas, e trazer referências musicais para criar a trilha sonora desse novo programa — que ainda não tinha nome, mas que viria a ser o “Fantástico”, até hoje no ar. “Eu estava com aquela função quando, no dia 23 de dezembro de 1972, nasceu minha filha. Boni me pressionando para entregar a trilha, e eu desesperado. Levei o violão para a maternidade. No dia 24 de dezembro, aquele silêncio, peguei o violão, com o berço da minha filha ao lado, e aquele início saiu direto. E a melodia, tudo. Eu tocando baixinho, só roçando na corda, porque eu tinha que fazer silêncio. E o compasso saía intuitivo, nada planejado. É um pouco o resumo da minha vida. Minha vida inteira saiu assim, na verdade."
VEJA MAIS: Um clipe com cenas da abertura original do “Fantástico”, cuja música foi criada por Guto Graça Mello
VOLTAR PARA A ESCOLA NUMA HORA DESSAS?
Enquanto ia fazendo cada vez mais sucesso na TV Globo, Mello um dia foi chamado por Boni, que lhe perguntou qual era a sua formação. Ao ouvir que o jovem era autodidata, o manda-chuva da emissora decidiu enviá-lo ao Berklee College of Music, nos Estados Unidos. A prova de acesso foi mais um desses momentos mágicos que aconteceram a Guto Graça Mello. “Tinha uma primeira folha com perguntas primárias, e, conforme ia passando as páginas, eu não conseguia responder quase nada. Mas a última era uma partitura vazia com uma melodia escrita, só as notas. E o desafio era: harmoniza e faz um arranjo para sete peças, sax alto, sax tenor, trombone, dois trompetes, guitarra, piano. Eu, que não consegui responder quase nada, quando cheguei à última página… (faz com a boca um ruído de alguém escrevendo muito rápido). No dia seguinte, todo mundo vendo a turma em que ia entrar, para mim havia um recado para comparecer à sala do catedrático de arranjo. Lá fui eu. Quando entrei, ele disse, furioso ‘Isto é uma escola séria, eu quero saber quem foi que te deu esse arranjo, você copiou.’ Respondi que fui eu. Ele: ’Não, impossível, você não pode fazer este arranjo sem conhecer as respostas às perguntas anteriores.’ Ele me passou uma nova partitura com uma melodia básica e, enquanto brigava com a mulher ao telefone, fiz uma harmonia. Impressionado, ele disse ‘Como é isso?’. E eu respondi: ‘Por isso estou aqui. Eu faço, mas me custa um esforço gigantesco. Quero aprender.’”
SOM LIVRE
Como diretor musical da Globo, Mello fazia muita produção de discos de telenovelas. Acabou entrando para a Som Livre. “João Araújo (mítico presidente da gravadora) era um grande homem. E acreditava em mim, como o Boni.” Rapidamente, Mello virou A&R da Som Livre. “Eu cuidava do cast nacional, que era o primo pobre da gravadora. Nunca me conformei com isso.” De tanto insistir, conseguiu que o cast nacional fosse além das trilhas de novelas e explorasse a criação de grandes artistas. Emplacou Rita Lee, Jorge Ben Jor. “Chegamos a ter os dez primeiros lugares (nas paradas de sucesso das rádios) de artistas nacionais da Som Livre. Houve uma reunião com o João, em que ele me disse ‘Guto, você está tentando fazer algo com a Som Livre que não é o propósito da gravadora. Nosso propósito é de marketing, é coexistir com todas as gravadoras usando material delas nas novelas da TV Globo. Você virou concorrente, e não pode, Guto. Você acaba com nosso negócio’", recordou Mello às gargalhadas.
QUEDA E NOVA ASCENSÃO
Durante o longo papo com Clê, Guto relembrou um momento, no início dos anos 1990, em que diz ter sido “banido do mercado fonográfico”: depois de uma suposta reunião entre executivos de gravadoras, decidiu-se que ele estava fora. Foi trabalhar com publicidade e trilhas sonoras de filmes. Até que um dia executivos da antiga Polygram o procuraram: haviam fechado um contrato com Maria Bethânia para um disco todo dedicado ao repertório de Erasmo e Roberto Carlos, mas a cantora havia imposto condições: Guto Graça Mello deveria ser o produtor, e o disco deveria ser gravado longe da gravadora, sem nenhuma interferência desta. O produtor e a intérprete, então, viajaram a lugares como Londres e Los Angeles e entregaram “As Canções Que Você Fez Para Mim”, até hoje o álbum mais bem-sucedido da carreira dela. Uma volta por cima e tanto. “A coisa mudou completamente de figura. Aí já passaram a me ligar dando novas ‘missões’, entre elas produzir um artista novo em que o mercado estava apostando. Era Netinho."
ABUSO DE DROGAS
Mello relembrou sua antiga relação com a cocaína, que permeava muitos dos seus trabalhos e das parcerias com músicos e artistas nos anos 1980. Ele contou ter parado sozinho e de bate-pronto. “Teve uma manhã (depois de vários dias de uso contínuo) que tive a certeza de que ia morrer. Como morreu o Ariovaldo, percussionista. Morreu na casa do Lincoln, uma história horrível. Mas eu me lembro direiinho: não tinha ninguém em casa, e eu tive a consciência de que ou eu parava ou morria. Foi uma coisa clara para mim. Eu não fiz tratamento, eu não fiz nada. Dessa manhã, eu senti que não dava mais, e todos os meus amigos estavam morrendo. (Parei) depois de uns seis anos, pelo menos, de muita loucura. A gente utilizou a droga, da pior maneira possível, para criar. Era obsessivo. A gente não ficava satisfeito nunca.”
XUXA
Quando Xuxa foi levada da Rede Manchete para a Globo, um enorme projeto foi construído ao redor dela. A Som Livre - e Guto Graça Mello - foram chamados a pensar a parte musical. “Perguntei: ‘ela canta?’ O João respondeu que não tinha a menor ideia, mas que precisávamos fazer um sucesso dela”, riu o produtor, que lembrou a primeira vez em que a viu: “Ela entrou com Pelé na sala, e tudo se iluminou. Mas não acertou nenhuma nota que eu pedi a ela para cantar.” O trabalho foi intenso. “Ninguém queria me dar música para uma ‘modelo’ cantar. E eu queria música boa.” A duras penas consegui montar um repertório.” Na época, Mello namorava Nina Pancevski, hoje uma das preparadoras vocais do programa “The Voice Brasil”. Ela basicamente gravou o disco inteiro com sua própria voz, e coube a Xuxa imitar cada detalha dessa gravação. “A Xuxa nisso era genial: não tinha isso de ‘ah, estou cansada’. É uma trabalhadora.” A voz dela foi gravada em 46 canais, depois cada um foi trabalhado separadamente. “Misturei tudo em 150 canais, e o resultado já era a voz da Xuxa. Aí pedi para ela ouvir aquilo e se imitar. Não me pergunte como, mas em algum momento descobri que é muito mais fácil para uma pessoa imitar a própria voz que a de outros. Deu certo.” O programa foi um estouro, o álbum inicial vendeu mais de 2,5 milhões de cópias (inventando o conceito de disco de diamante, até então inexistente), e Gusto pode se gabar de ter forjado, do zero, uma cantora.
PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA
“Sempre fui bom de música e péssimo de business pessoal. Péssimo. Dei uma parada enorme na pandemia. Mas tenho coisas aí para sair. Fui convidado pelo Tadeu Aguiar, grande amigo meu, para fazer dois grandes musicais. Estão prontos, inéditos. Tudo gravado. Um deles tem um texto genial, do Eduardo Bakr, marido do Tadeu, baseado em Goethe. Modéstia à parte, a trilha é espetacular. Ficou cinco anos esperando para ser lançado, e nada. É um musical caro. Agora parece que vai sair. Tadeu é um grande diretor, tenho uma confiança irrestrita na obra dele. Fiquei parado três anos — eu e o mundo. Mas agora tenho produzido coisas de novo: a trilha de uma minissérie também com o Tadeu; estou fechando a trilha do filme ’Nosso Lar 2’, a primeira foi do Philip Glass, que agora não pode."
Aos 74 anos, ainda criando, e relevante, Guto Graça Mello — que produziu para João Gilberto, Tom Jobim, Maria Bethânia, Gal Costa, Milton Nascimento, Zizi Possi, Sandy & Junior, Chitãozinho & Xororó, Roberto Carlos e tantos outros — vê um cenário contemporâneo de mais sombras que luzes.
“Sempre fui muito intuitivo, tinha esse jeito meio maluco de criar. Não sabia muito bem o que queria, mas sabia sempre o que não queria. E procurava não copiar ninguém. Fico triste com o que acontece hoje em dia: todo mundo copia todo mundo. As pessoas dizem ’não tenho a música ainda, mas tenho a levada’, Levada é o cacete! Acho que a música está meio perdida hoje em dia. Não tem perenidade. Não quero ser saudosista, mas a qualidade da nossa música não pode ficar perdida do jeito que está. Não tem que ser só bunda e só consumo instantâneo. A indústria não pode querer só vender.”
VEJA MAIS: Assista à entrevista completa no canal Corredor 5, de Clemente Magalhães
LEIA MAIS: Duas reportagens recentes do site da UBC sobre o papel vital dos A&Rs:
Já são 100 mil novas músicas por dia no Spotify. É hora de chamar o A&R