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Calcanhotto: 'Se você precisa de silêncio para compor, está ferrado'
Publicado em 17/04/2023

Cantora e compositora fala sobre criação, novo disco, show com repertório de Gal e lições que aprendeu como professora em Coimbra

Por Eduardo Fradkin, do Rio

Fotos de Leo Aversa

Com um novo disco de canções não tão novas — criadas entre 2016 e 2021 — lançado no fim de março, Adriana Calcanhotto mergulha numa intensa agenda de shows. Além da turnê desse álbum, batizado "Errante", ela prepara outra, chamada "Coisas Sagradas Permanecem", em homenagem a Gal Costa, com repertório da cantora morta no ano passado. Em conversa com a UBC, Calcanhotto fala sobre seus métodos de trabalho, sua atividade como professora em Coimbra (cidade onde inicia a turnê de "Errante", no dia 24 de maio) e a pausa que está fazendo como compositora.

 

UBC: "Errante" começa e termina com músicas que fazem referência ao movimento modernista (respectivamente, "Prova dos Nove", que cita o aforismo "A alegria é a prova dos nove", de Oswald de Andrade, e "Nômade", que faz alusão à artista Lygia Clark com o verso "A casa é o corpo"). Por que você fez essas escolhas?

ADRIANA CALCANHOTTO: É porque eu continuo prestando atenção nisso. Ano passado, foi a efeméride de cem anos da Semana de Arte Moderna, que não foi um evento inaugurador, mas foi emblemático desse movimento. E teve muita coisa acontecendo. Eu não paro de pensar nesse assunto, porque ele não deixou de ser interessante para mim.

O que você tem visto de cativante nas artes visuais e na literatura nestes últimos tempos? E como isso tem se refletido nas suas músicas?

Tem uma coisa curiosa... Embora esse disco esteja saindo agora, as canções são mais antigas. É um material que eu fui guardando, um material inédito de compositora. Então, quando eu compus as canções do "Só" (álbum de 2020), eu já tinha estas (do "Errante"). Uma ou outra eu terminei depois, como "Nômade", que é uma canção que nasceu na estrada, quando eu fiz uma turnê junto com Gilberto Gil (em 2021). É baseada em conversas que eu tive com o Gil sobre a estrada e essa vida nômade. Mas as outras (faixas) eu já tinha. Elas não são de agora, vêm desde 2016. Nesse tempo todo, o artista que mais vem me instigando é o Denilson Baniwa. Eu acho um gênio. Ele me emociona e me surpreende com seu trabalho. Eu o conheci há pouco tempo. Trocamos abraços, e eu caí no choro. Esse é o cara para mim, no momento.

Você disse, em entrevistas recentes, que, desde a pandemia, tem experimentado novas formas de compor, sem se ater à voz e ao violão. Tem usado material garimpado na internet como base. E, desde que começou a dar aulas na Universidade de Coimbra, tem se preocupado em documentar as etapas do processo de criação, para relatar aos alunos. Como essas mudanças têm moldado o seu trabalho?

É interessante essa pergunta, porque a última canção que eu fiz antes da pandemia é um samba que está neste disco, "Levou Para o Samba Minha Fantasia". Todo carnaval eu acabo fazendo um samba. Gosto de ver, pela televisão, um pouco do carnaval da Bahia, um pouco dos desfiles do Rio, um pouquinho de São Paulo, de Belo Horizonte... Fico ligada nas canções e nas batidas. Então, eu fiz esse samba, e começou a pandemia. Durante a quarentena, fui por esse caminho que você citou. Tem uma coisa no meu curso que eu falo para os alunos. Eles não precisam de nenhuma qualificação para estar na minha turma, então, às vezes, tem gente que estudou composição no conservatório, mas não consegue compor; tem gente que toca instrumento, mas tem os que não tocam. Gosto de trabalhar com esse não-privilégio. Quem não toca não tem que achar que precisa tocar para compor. Não precisa. É claro que ajuda, mas não é obrigatório. Usando batidas que já vêm prontas, você pode compor. É tudo para desmistificar a ideia de que o compositor precisa de uma condição ideal para criar. Se você precisa de silêncio para compor, está ferrado, porque não há silêncio no mundo. Se você diz que não sabe tocar nada e, por isso, não pode compor, você está se dando uma desculpa.

Você não busca o silêncio? Você mora em meio ao verde no Alto da Boa Vista (bairro do Rio de Janeiro) e gravou esse disco em Araras (distrito de Petrópolis, na região serrana do Estado do Rio).

É, mas o mato não é propriamente silencioso. O barulho do mato é mais agradável do que o urbano, para o meu gosto. Tem bicharada, chuva, vento... São barulhos dos quais eu gosto. A gente arruma armadilhas assim, se ficar dependente de situações ideais para compor. Eu gosto do silêncio, mas eu componho na fila do avião; eu fico mentalmente mudando sílabas de lugar... Não espero estar no mato para compor. Componho em momentos que não parecem nada inspiradores.

Se você tem uma ideia numa fila de aeroporto, registra no celular?

Eu registro no celular, sim, se eu tiver uma ideia de melodia; às vezes, é uma ideia de divisão dentro de um ritmo. Posso estar num avião, num ônibus, em qualquer lugar. Isso é uma coisa que eu aprendi com a Marisa Monte. Ela registra qualquer coisinha. Mais tarde, ela cata aquilo, e pode ser algo que parecia não ter importância, se visto isoladamente, sem um contexto, mas, às vezes, o contexto aparece depois. O sentido surge depois. Então, é essencial ter um banco de ideias. Eu não gravava. Eu achava que a minha memória dava conta. E tinha a ideia de que, se a minha memória não registrasse, de um dia para o outro, um verso que eu pensei, é porque ele não valia a pena. Mas não é bem assim. A Marisa é uma grande professora disso.

E você, como professora em Coimbra, já recebeu perguntas instigantes dos seus alunos?

Teve uma pergunta que, uma vez, um aluno me fez que era assim: "eu só faço canções de amor. Estou fazendo sempre a mesma coisa?". Eu falei: "o amor é sempre igual?". Ele disse: "não". Eu respondi: "então, não". Tem perguntas que me botam para pensar, e essa é a parte boa de ensinar. O que eu falo, sobretudo, para meus alunos é que há milhões de canções no mundo, então, eles precisam pensar: "para que mais uma?". Um compositor tem que estar convicto do que faz, né? Então, não se trata só de ensinar como fazer, mas por que fazer. 

As canções de "Errante" têm arranjos diversificados, tocados pelos músicos Alberto e Jorge Continentino, Davi Moraes, Domenico Lancelotti, Diogo Gomes e Marlon Sette. Você dá orientações ou pitacos nessa parte da criação?

Neste disco, não. E, quando eu trabalho com esses músicos, não vejo motivo para isso. Acho que o pitaco é chamá-los. Quando os chamo, eles se tornam parceiros de composição. Eles são autores também. Então, eles têm um jeito de olhar para as canções que é uma visão de quem faz canção também, e não só como instrumentistas. Ninguém combina nada. O jeito de eles darem propostas é tocando. O máximo que pode acontecer é eu não usar uma ou outra coisa daquilo que eles apresentam como opções. O disco tem uma coisa de banda, de cada um se colocando dentro da canção como entende. Se você ouvir "Era Isso o Amor?", eu estou tocando samba no violão, e eles estão tocando rock. Eles se colocaram de um jeito mais polirrítmico nesse disco do que em "O Micróbio do Samba", por exemplo. Ali, eu mostrava algo como samba, e eles tocavam como samba. Agora, eu mostrava algo como samba, e eles tocavam outras coisas. O disco é muito polirrítmico, que é uma coisa que eu adoro.

Há uma presença maior de sopros neste disco, certo? 

Eu me dei conta de que muitas coisas que eu penso, frases musicais que eu penso quando estou fazendo uma canção... muitas vezes cantarolei essas coisas nos discos, mas não são para cantarolar. São desenhos dos sopros. Só agora eu estou levando isso para o palco. Isso me deu um sossego. Então, os sopros estão entrando para não sair mais.

Por que guardou as músicas de "Errante" por tanto tempo?

O disco que eu fiz anterior ao "Só" foi o "Margem" (2019), que faz parte da minha trilogia marítima. Então, algumas canções dessa safra de 2016 (que viriam a gerar "Errante"), algumas canções de luto... elas não cabiam no "Margem". Aí, veio a pandemia, e vieram as canções sobre a pandemia (que deram origem a "Só"), com uma intenção de crônica daquele período. O "Errante" tem canções que são de safras anteriores a essa, com composições nitidamente feitas no violão. As melodias são restritas ao meu vocabulário no instrumento. De alguma forma, o disco "Só" aponta mais para o que eu estaria fazendo agora se estivesse compondo. Acontece que, depois da canção "2 de junho" (lançada em 2020, quatro meses depois do disco "Só"), eu não compus mais. 

A que você atribui isso? É um bloqueio criativo?

Não sei. Como eu fiz tantas canções, bem acima da minha média... Eu fiz muito mais canções nesses três anos recentes do que em períodos muito mais longos da minha vida. Eu não sei dizer (o porquê), mas não peguei mais o instrumento, e nem no show estou tocando. Estou vivendo uma experiência nova, porque estou com dois espetáculos ao mesmo tempo: o "Errante", que é basicamente um trabalho de autora, e o show da Gal Costa, que é basicamente um trabalho de intérprete. Tem duas músicas minhas no show da Gal, mas só porque ela as gravou. Eu quero ver o que vai acontecer depois disso, o que vai falar mais alto, se eu vou sentir necessidade de compor. Na estrada, é comum levar o instrumento para o quarto e tocar, o que leva a compor. Mas, como eu não estou tocando no "Errante" e, na Gal, muito pouquinho, não sei o que vai acontecer.

Como era a sua relação com a Gal?

Eu descobri a Gal no "Doces Bárbaros". Foi quando parei de ouvir a música que meus pais ouviam e passei a me interessar por esses artistas que faziam letras incríveis e que tinham preocupação com figurinos e luzes para os shows serem mais que apenas recitais de música. A partir dali, eu comecei a ouvir tudo que a Gal fez. Agora que estou trabalhando no repertório, constatei que eu conheço muito melhor do que eu imaginava os discos, os arranjos, tudo que a flauta faz, o que o piano faz, as viradas de bateria. Eu e Gal não fomos íntimas, mas nossos encontros eram de muito afeto. As duas tímidas, librianas. Tínhamos uma coisa parecida.

Que músicas do repertório da Gal você gostaria de ter composto?

Muitas! "Nuvem Negra" é uma canção linda e que está no show. "Índia" está no show. "Meu nome é Gal"... Tem também essas pessoas... O Erasmo (Carlos) está fazendo muita falta, o Moraes (Moreira) está fazendo muita falta, então tem duas canções dele (no show). Essas pessoas que ela amava e que gravou estão nesse roteiro também.

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