Análise das mais tocadas nas plataformas mostra que em Alemanha, Itália e outros territórios o top 10 já é 100% de artistas nacionais
De Berlim
Há décadas, a indústria repete um mantra sobre o mercado brasileiro: nosso país é um dos poucos em nível mundial onde o cancioneiro local é mais forte que o estrangeiro, mesmo com a música avassaladora vinda dos Estados Unidos metida na conta. Um interessante estudo recém-publicado pelos pesquisadores Will Page e Chris Dalla Riva, da London School of Economics, mostra que o streaming está mudando esse panorama e ampliando o clube restrito dos países que preferem sua própria produção nacional.
Segundo o trabalho “‘Glocalização' do streaming de música dentro e fora da Europa”, nações como Reino Unido, Alemanha e Itália terminaram 2022 com todo o seu top 10 das mais tocadas dominado por músicas e artistas locais. No caso da Espanha, pela primeira vez, dez entre as dez primeiras canções mais escutadas eram em castelhano. Mas, ali, nem todas eram do próprio país, dado o enorme peso da produção contemporânea latino-americana.
LEIA MAIS: O estudo completo (em inglês)
A análise desses números feita pelos pesquisadores abala as estruturas de uma ideia também amplamente repetida: a de que o streaming (através dos algoritmos, principalmente) homogeiniza a música e beneficia nomes globais em detrimento dos talentos regionais.
Os pesquisadores se centraram em dez mercados europeus: Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Países Baixos, Espanha, Suécia, Polônia, Irlanda e Portugal. Somadas, as receitas desses países com música em 2022, segundo o último relatório da IFPI - Federação Internacional da Indústria Fonográfica, foi de US$ 5,9 bilhões (ou R$ 28,6 bilhões pelo câmbio atual). Isso representa ainda 81% de tudo o que a música gravada gera na Europa e 22% do total global. Um conjunto representativo, portanto.
Para comparar números que refletissem a diversidade do consumo na era do streaming, Page e Dalla Riva utilizaram os bons e velhos charts, as paradas de sucessos dos países:
“Os cínicos poderiam argumentar que, em um mundo digital de prateleiras infinitas com 100 milhões de músicas disponíveis em telefones, as paradas de sucesso não importam mais. Argumentamos o contrário. Elas tornam o popular mais visível, e o visível, mais popular”, dizem os autores no trabalho. “Em um mercado tão concorrido, qualquer coisa que ajude a se destacar ganha relevância. As paradas não são perfeitas, mas acreditamos em seu significado duradouro.”
Como não há critérios únicos para quantificar o sucesso em cada país, os autores do estudo usaram a metodologia da Luminate, a fonte oficial dos dados globais de streaming, que trouxe números de plataformas de áudio e vídeo de cada nação analisada. Depois, usaram o enorme banco de dados da Gracenot, uma empresa subsidiária da consultoria Nielsen focada na indústria audiovisual, para saber de onde eram os artistas. Por fim, tudo foi posto lado a lado com as listas globais de mais ouvidas da IFPI, para entender em que lugar esses megahits apareciam nas paradas locais.
O cruzamento deixou claro: está em marcha um fenômeno que os pesquisadores chamaram de “glocalização”, ou seja, a adaptação local, com sons e sotaques próprios, de um panorama musical global.
Mas isto significa que a música está ficando igual em todos os lugares, mudando só a língua?
“Pelo contrário, existe uma ampla evidência de que os mercados locais estão prosperando em plataformas globais”, respondem, categóricos, Will Page e Chris Dalla Riva.
Eles argumentam que se, por um lado, há uma inegável repetição dos mesmos gêneros — rap/hip hop, pop ou, dependendo do mercado, rock ou ritmos latinos —, tudo isso ganha sabor local. E, mais importante: um mercado local mais forte é uma boa maneira de fomentar gêneros alternativos, sons regionais antes ignorados ou desvalorizados e cenas que não costumavam ter espaço na mídia.
Toda essa explosão de força foi ajudada pelo streaming da seguinte maneira, segundo o estudo:
“Tudo isso aponta para um mercado crescente onde o poder foi transferido de gravadoras globais e plataformas de streaming para seus escritórios locais. E, de antigos modelos lineares de transmissão, esse poder vai para novos modelos de streaming que capacitam os consumidores com escolhas", concluem os pesquisadores.
Claro que há um viés importante no estudo: o fato de todos os mercados analisados serem países industrializados, com uma indústria fonográfica consolidada, ainda que em diferentes graus de desenvolvimento. Mesmo em nações como Polônia e Portugal, a música local tem presença - embora, no caso português, os sons do Brasil sejam os dominantes. A lógica poderia nos levar a pensar que países pobres e que ainda lutam por condições básicas de vida não teriam como desenvolver mercados musicais fortes próprios.
Mas a realidade é mais complexa, como mostra a recente explosão do pop africano, com artistas nigerianos do afrobeat como WizKid, Tiwa Savage e Flavour, além de outros como Jah Moloko (de Mali, radicado no Senegal), furando a bolha e estourando.
Movidos com uma ajuda ainda relativamente tímida do streaming, mas amparados numa forte presença na mídia local (rádio e TV) e, em alguns casos, na venda direta (nas ruas, nos mercados) de CDs autoproduzidos, eles reforçam ao seu modo a tendência encontrada pelos pesquisadores locais: a de que o mundo vive uma onda de empoderamento da música local. Uma onda que aparentemente tem tudo para não ser passageira.
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