Número equivale a 570 anos de audição; especialistas falam do papel das playlists para filtrar tudo e da sua influência na criação musical
Por Alessandro Soler, de Madri
e Eduardo Lemos, de Londres
A diretora global editorial da Apple Music, Rachel Newman, anunciou nesta segunda-feira (3) que a plataforma alcançou a marca de 100 milhões de canções subidas ao seu banco de dados. Há alguns meses, o Spotify, serviço de streaming musical com mais assinantes mundialmente, havia difundido o seu próprio número: 80 milhões. A Apple agora alega ser a detentora do maior catálogo, embora o SoundCloud tenha anunciado, ainda em 2019, haver alcançado a marca de 200 milhões de faixas.
"Se trata de mais música do que você pode ouvir numa vida, ou em várias vidas. Mais músicas do que qualquer outra plataforma. Simplesmente a maior coleção de música, em qualquer formato, em todos os tempos", escreveu Newman, superlativamente, num post no blog oficial de imprensa da Apple.
A UBC fez um rápido cálculo, com base numa média de três minutos de duração para cada faixa, e chegou ao número de 570 anos necessários para escutar toda essa quantidade de música. Isso se a renovação diária não fosse da ordem de 60 mil novas canções, como costuma divulgar o Spotify (embora a revista Billboard tenha publicado em abril um detalhado estudo sobre métricas da plataforma revisando esse número para algo mais próximo a 23 mil novas faixas por dia).
Como navegar um mar tão extenso
Sejam 23 mil ou 60 mil, trata-se de coisa à beça. E que reaquece o debate sobre a necessária curadoria, uma discussão que vem ganhando força nos últimos tempos, à medida que os algoritmos são cada vez mais acusados de dirigir a atenção dos ouvintes a estilos e artistas específicos, ignorando a experimentação e o mundo indie.
Cada vez mais especialistas exaltam o papel do curador do streaming, similar ao do radialista de sempre. Apesar de que as playlists editorais também estão sob o escrutínio do mercado, com suspeitas constantes de uso de critérios enviesados, e não claros, para a inclusão de uma faixa.
"As playlists são importantes porque o streaming é a principal forma de se consumir música no mundo. A produção musical sempre teve filtros, historicamente tem crítica musical no Brasil pelo menos desde o século XIX. Depois vieram o rádio, a TV… Só que esses filtros hoje têm menos relevância do que já tiveram no passado. Influenciadores, redes sociais e as playlists fazem este papel hoje em dia", diz a jornalista e pesquisadora musical Kamille Viola, autora do livro "África Brasil: um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver" (Edições Sesc). "Estar nas principais playlists traz visibilidade para artistas que estão lutando por espaços com outros artistas que já são conhecidos."
Para Alan Lopes, coordenador de A&R da Som Livre, a playlist editorial tem um papel fundamental para destacar determinados lançamentos ou artistas em meio à gigantesca quantidade de dados disponível nas plataformas:
"Uma playlist com boa curadoria pode impulsionar carreiras de artistas mais preparados e atentos ao que o público busca. Porém, o processo de acesso a elas ainda é mistificado e com pouca informação prática de qualidade."
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Segundo o diretor de conteúdo, marketing artístico e relações com os selos da Deezer Brasil, Pedro Kurtz, não é tão complicado assim:
"Não só para o pop, mas para todos os gêneros musicais, existem editores que decidem semanalmente quais músicas entram e quais saem. Os critérios incluem performance e potencial das faixas, histórico do artista, engajamento do artista com a plataforma, o calendário de lançamento, como ele vem fazendo a divulgação… Esses são alguns dos fatores, dentre muitos."
Mas será que tudo é celebração em relação às playlists?
Definitivamente, não. Como mostramos na semana passada aqui no site, o autor de um grande estudo sobre mecanismos para melhorar a remuneração aos compositores no streaming vê com ressalvas o papel dominante dessas listas, sobretudo da maneira em que são feitas atualmente. Para o francês Emmanuel Legrand, "o uso de algoritmos, bem como o gargalo representado pelas playlists (editoriais) mais populares, agrava a desigualdade, fazendo com que poucos autores sejam sistematicamente os mais ouvidos."
Dados oficiais do Spotify mostram, de fato, que só 57 mil titulares dividem 90% do bolo dos direitos autorais reservado a eles, enquanto os outros 7 milhões e 950 mil autores com músicas na plataforma levam os 10% restantes. Os números, claro, são consequência direta do fato de a esmagadora maioria de criadores que publicam ali suas canções não ter um número relevante de audições.
Listas que influenciam a própria criação
Isso faz com que, para tentar participar das principais playlists, alguns compositores se vejam obrigados a adaptar seus estilos e adotar "fórmulas" de sucesso — o que, obviamente, limita e condiciona intensamente a criação musical.
"Artistas diversos estão colocando o funk no seu trabalho, as músicas ganham versão em piseiro… todo mundo quer pegar uma carona no que está fazendo sucesso. A gente sabe de escritórios de compositores que compõem já pensando no padrão de música que tem feito sucesso. Uma coisa estimula a outra", diz Kamille Viola.
Alan Lopes também reconhece que as playlists influenciam decisões artísticas:
"O trabalho do A&R precisa estar em perfeito alinhamento com o que o artista deseja criar e comunicar, e dentro desse alinhamento há o papel de enxergar esses detalhes e características das faixas que ampliam o poder de posicionamento nas playlists, valorizando-os através da produção musical", detalha.
Ele vê esta influência como consequência natural ("novas ferramentas ampliam as perspectivas de criação e de consumo, criando novos formatos de se fazer e de se consumir arte"), mas reitera que, na sua opinião, não existe fórmula mágica:
"O mais importante são os valores de composição e criação. Antes de tudo, a música precisa ser boa e cumprir seu papel de comunicar uma ideia ou sentimento."
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