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O que o deepfake do comercial de Elis e Maria Rita oferece à música
Publicado em 07/07/2023

Tecnologia que 'revive' artistas mortos pode aumentar sincronização de canções antigas em filmes, séries e anúncios; especialistas comentam

Por Alessandro Soler

Está na boca do povo e no viral das redes. O comercial da Volkswagen que uniu digitalmente Maria Rita num duo com a mãe, Elis Regina, morta em 1981, não só abre as portas ao chamado deepfake em anúncios publicitários de grandes marcas no Brasil; também poderia ser um verdadeiro salto para o faturamento da música de catálogo.

O deepfake (ou falso profundo, em tradução literal) é uma tecnologia que insere traços do rosto de uma pessoa num dublê a partir da leitura das expressões faciais do personagem que se quer simular. A fonte dessa leitura são vídeos reais, e padrões digitais são estabelecidos e “imitados” por inteligência artificial. Já vem sendo usado no mundo há algum tempo, e inclusive falamos disso numa matéria de 2021 aqui no site, na qual discutíamos a quem pertenciam os direitos (autorais e conexos) no caso de criação de música original para deepfake.

Mas o que faz esta peça dirigida por Dulcidio Caldeira, da Boiler Filmes, não é criação de música original. Ele emprega uma canção antiga, de catálogo, “Como Nossos Pais”, composta por Belchior. Inclusive, no trecho em que a Elis digital canta, utiliza-se o fonograma original com a voz da artista. Isto significa que não só os herdeiros de Belchior e a editora receberão seus direitos autorais. Também incidem os direitos conexos, gerando-se receita para o produtor fonográfico (no caso, a gravadora Universal) e os herdeiros da cantora gaúcha. 

VEJA MAIS: A peça que une Maria Rita e Elis Regina

“Foi uma jogada comercial incrível da editora responsável pela música, da gravadora responsável pelo fonograma e da marca, que se beneficiou de uma música sensacional, atemporal. Está se abrindo um leque de possibilidades para o uso do catálogo. Se o deepfake pode 'ressuscitar' qualquer um, hits do passado vão voltar em outras peças. Já existe um apreço do mercado publicitário pelo catálogo, por canções que todo mundo conhece. Agora, as oportunidades de uso se multiplicam”, diz Flavia Cesar, diretora de licenciamento e sincronização na Warner Chappell. "Quem ganha são o autor e seus descendentes. O maior tesouro que tem um criador é sua obra, e ela poderá seguir viva mais tempo."

Para que o processo de autorizações e licenciamento resultasse num acordo benéfico a todas as partes, as negociações levaram oito meses, segundo fontes ligadas ao comercial. De acordo com a advogada Raquel Lemos, especialista em direito digital – que não esteve envolvida no caso –, um processo de sincronização envolvendo deepfake e outras tecnologias de inteligência artificial não difere, legalmente, de outro tradicional. Mesmo tendo sido escrita e publicada muito antes do surgimento desta técnica, a lei atual contempla a situação.

“É a mesma coisa. Não há etapa de negociação da sincronização (seja com imagens reais ou de deepfake) que não tenha uma decupagem do contexto de uso, ou seja, conhecer a cena, trailer ou teor da peça audiovisual e seu destino de uso”, ela explica. “É possível que (neste primeiro momento da nova tecnologia) enfrentemos decisões refratárias (por parte dos herdeiros ou titulares), de avesso ao novo. Costumo dizer que o processo de negociação de sincronização não pode ser um processo de convencimento do titular sobre a inserção da obra neste ou naquele projeto, mas sim uma decisão de coerência, de contexto de uso, tanto para o autor como para a obra.”

Se há alguém que vê coerência no uso em questão é um dos maiores publicitários do país. À UBC, Washington Olivetto elogia o comercial dirigido por Caldeira — “uma ideia muito bonita, afetiva” — e diz que, com ou sem deepfake, uma boa publicidade continuará a ser aquela que é amparada num conceito forte e que funcione, independentemente do uso ou não de deepfakes e outras tecnologias de inteligência artificial. 

“Mas é claro que os deepfakes criam novas pontes com a música, com artistas do passado, cuja obra pode ser usada não só na publicidade, mas no cinema, na TV. Historicamente, a gente sempre teve momentos em que a possibilidade tecnológica mexeu nas linguagens. No universo da música, houve nos anos 1990 a Natalie Cole cantando 'Unforgettable' com o pai, Nat King Cole, que já era falecido. Neste momento, agora, há um musical do ABBA em Londres totalmente digital com músicas antigas e também do disco novo. Os próprios integrantes foram assistir!”, diz Olivetto, citando um caso em que a sincronização com criação digital do intérprete também pode se aplicar a artistas vivos.

Marcos Pompiano, gerente de sincronização da Sony Music Publishing, é outro a mencionar o icônico “encontro” entre Natalie e Nat King Cole. E relembra mais um: 

“No mesmo ano de 1992, talvez por influência desse clipe de pai e filha, Tom Jobim e Vinicius, que morreu em 1980, também apareceram juntos numa campanha da Brahma. Evidentemente foi com a tecnologia da época. Agora, surge uma nova tecnologia, e novas oportunidades vêm com ela. Mas não vejo, pelo menos por ora, a possibilidade de uma grande explosão no número de autorizações de sincronização por isso.”

A explicação para esse otimismo moderado, segundo Pompiano, é simples. Como já mencionado pela advogada Raquel Lemos, é preciso que haja sempre coerência na sincronização para que o processo avance. E nem sempre isso ocorre, daí a duração geralmente longa das negociações. 

“Recentemente, um artista nosso, que se tornou vegano durante a pandemia, negou a sincronização de uma música sua no comercial de uma empresa que processa carnes. Ele está vivo, a negativa foi por ideologia mesmo. Também já tivemos uma consulta para uma obra clássica, de autor que já não está mais presente, para ser interpretada (através de inteligência artificial) por uma intérprete que também já morreu. Falei com a família, que demonstrou dúvidas: não via uma conexão, uma similaridade, entre os dois artistas em questão. Então, você tem agora uma situação em que os deepfakes abrem janelas, mas sempre vamos esbarrar nessas ponderações”, diz o especialista. 

Isto porque os herdeiros e sucessores dos titulares originais são, legalmente, os guardiães do seu direito moral. Portanto, e pelo menos em tese, deveriam garantir que não se faça um uso que fira as convicções do criador da música nem desvirtue seu propósito original. 

“Será que todas as autorizações (para sincronização) já realizadas por herdeiros ou sucessores manifestaram, até aqui, a vontade dos autores?”, provoca Raquel Lemos. “Esta pergunta não é nova, mas foi preciso que a tecnologia nos levasse a pensar a imagem ou o direito moral do autor além do texto legal. É um momento rico, provocador, porque o alcance que a IA traz para o post mortem é o que nos assusta, e esse deve ser o foco do debate. A IA brinca com a ideia de finitude, cria formas de vida. E isso é novo sob a ótica jurídica.”

Novo e, num certo sentido, também desconcertante. 

“Para mim, é uma coisa maluca: eu tive o privilégio de conhecer a Elis quando eu era muito jovenzinho, e ela, já um ícone. E tive o privilégio de participar do lançamento da Maria Rita, que é minha amiga. Vê-las juntas, com a Elis tão real, foi um momento muito bonito”, descreve Washington Olivetto. “Acho que usos assim tendem a ser aprovados, porque são pertinentes, têm sentido. E enriquecem a experiência do produto audiovisual, que se alimenta de boa música, da literatura, da pintura, das artes em geral. Sempre foi assim e sempre vai ser.”

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