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Com franqueza e sensibilidade, Nando Reis aborda vícios e lança alerta
Publicado em 31/07/2023

Em depoimento à revista Piauí, ele fala de como superou adicções ao álcool e à cocaína, antes glamourizados num meio difícil como a música

Do Rio 

A revista Piauí publicou este fim de semana um depoimento sensível e franco de Nando Reis à repórter Lia Hama sobre um tema comum e, paradoxalmente, tabu no meio da música: a adicção ao álcool e às drogas. Ao fazer seu “outing” - a exposição pública da sua condição -, Nando lança um alerta sem dramatismo, e com a verdade da experiência pessoal vivida, sobre a daninha glamourização das drogas e do álcool e da sua associação à criatividade. 

Como o cantor e compositor descreveu, sua grande timidez e a insegurança sobre o próprio trabalho o fizeram aprofundar o uso de álcool e, anos depois, de cocaína. A tentativa de controlar a ansiedade pela busca do sucesso e da aceitação dos demais era o pano de fundo. Foram 40 anos de uso abusivo de álcool, como relatou. 

Nando não se dava conta, então, de algo que estudiosos dos transtornos mentais vêm reiteradamente constatando há décadas. Longe de controlar a ansiedade e a depressão, o álcool e as drogas que alteram a consciência as potencializam. É o que afirmou à UBC Carlos Felipe Almeida D'Oliveira, atualmente presidente da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio (ABEPS).

“O uso dessas substâncias é favorecedor da ansiedade e da depressão”, resumiu o médico, descrevendo o ciclo vicioso da busca de alívio aos sintomas da ansiedade através do álcool e das drogas e da piora desses mesmos sintomas após o uso, o que leva à repetição em busca de mais alívio.

Hoje, Nando é consciente disso. Com sua autorização, reproduzimos vários trechos do seu ilustrativo relato, que pode ser lido na íntegra no site da revista Piauí. No texto, faz um acerto de contas com seus companheiros do Titãs e com a família. E deixa uma lição e tanto para pessoas de todas as idades que associam drogas e álcool a uma vida de sucesso na arte.

 

“Minha jornada com o álcool começou na adolescência e gradativamente foi se tornando um uso abusivo e uma dependência. Comecei a beber aos 13 anos de idade e só parei aos 53. Foram décadas de consumo pesado e, com o passar do tempo, associado à cocaína. Estou há quase sete anos sóbrio, mas não deixei de ser alcoólatra: consigo sentir a compulsão dentro de mim.

Durante muito tempo acreditei no mito de que o álcool traz espontaneidade às pessoas. Hoje vejo que não é espontaneidade, é artificialidade e distorção. 

(...)

Fundamos os Titãs em 1982 e deixei a banda vinte anos depois, num momento em que eu estava bebendo muito. Hoje percebo o quanto o uso abusivo de álcool e cocaína foi um elemento crucial para o desgaste da minha relação com o grupo. Eu era um cara inseguro e muitas vezes não me sentia à vontade no meio artístico. Tinha dificuldade de lidar com a hostilidade, a competitividade e a inveja no ambiente em que atuo. Esses sentimentos faziam com que eu me visse ameaçado – e o álcool atenuava essa angústia.

Parei de beber no dia 6 de outubro de 2016. Portanto, reencontrar meus amigos para uma turnê agora, após quase sete anos limpo, é uma experiência inédita e significativa. Esse processo da recuperação da sobriedade e, consequentemente, da lucidez é uma espécie de despertar para mim.

Minhas memórias mais antigas com álcool são no ambiente familiar. Tenho a lembrança de ver meu pai tomando uísque, um cowboyzinho, antes de sair para jantar com a minha mãe. Eu achava aquilo bonito e elegante. 

(…)

O que distinguia a minha relação com a bebida da do meu pai é que eu não conseguia beber apenas socialmente. Eu bebia compulsivamente, inclusive no ambiente de trabalho. Cometi o erro primário de vincular a bebida ao meu processo de criação artística.

(...)

A cocaína entrou na minha vida aos 27 anos. Era uma droga presente nos ambientes que eu frequentava nos anos 1980 e 1990. Logo desenvolvi uma dependência cruzada de álcool e cocaína. Eu não me importava de ficar bêbado e cheirado, ao contrário: achava graça nisso. Me divertia sendo o mais doido, o que cheirava a maior carreira, o que bebia todas. Me tornei a figura folclórica, o cara que virava cinco noites sem dormir e fazia shows nesse estado. 

(...)

Eu sempre gostei de beber sozinho, especialmente nos quartos de hotel após os shows. Num primeiro momento, essa alteração da consciência me levava a um estado contemplativo e de elucubração, que eu associei à criatividade. Eu me considerava um bebedor funcional: compus muitas músicas embriagado, e isso funcionou durante muito tempo. Sou extremamente autocrítico e perseguido pela neurose de me sentir incapaz, então a bebida atuava como um agente desinibidor.

(...)

Em 2002, prestes a completar 40 anos, saí da banda e logo depois me separei (de Vânia, sua mulher de décadas e mãe de seus quatro filhos). Achava que essas atitudes iriam resolver o meu problema de me sentir eternamente cindido, sempre com os pés em duas canoas: um na banda e outro na carreira solo; um em casa, sóbrio, e outro bêbado e louco rodando pelo mundo. Aparentemente, com as separações, meus problemas de cisão estavam resolvidos e eu estava livre para viver outras experiências.

(…) 

Morando sozinho, passei por períodos limpo, mas também por fases em que bebia e cheirava todos os dias. Fui perdendo o freio do consumo do álcool e da cocaína e aquilo foi comprometendo a minha vida pessoal e profissional. Na carreira que escolhi, não adianta só fazer composições bacanas no quarto de hotel, eu me propus a me apresentar em público. Fiz coisas horrorosas, como cantar completamente embriagado e cair no palco. Cheguei a tocar duas vezes a mesma música num show porque não lembrava que tinha tocado antes. Se tivesse feito o que fiz na era dos celulares e das redes sociais, eu seria aniquilado.

Do ponto de vista familiar, as coisas foram ficando muito ruins. Me tornei uma pessoa inconveniente e desagradável, e naturalmente meus filhos foram se afastando de mim. Quando seus filhos são crianças, eles não se dão conta de que você está bêbado, mas, quando crescem, aquilo incomoda. Minha filha ligava para a mãe e dizia: “Vem me buscar porque o papai está um saco.” Em determinado momento, a Vânia proibiu nossos filhos de irem à minha casa. Eu os machuquei muito – nunca fisicamente, mas emocionalmente.

(...)

O fundo do poço foi uma viagem para Seattle em 2016. Ali não havia cocaína, então mergulhei de cabeça no álcool. Eu simplesmente não conseguia parar de beber. Foi a primeira vez que acordei no meio da noite sentindo a necessidade de ingerir álcool. Percebi que estava ficando louco, desesperado e não enxergava saída para aquela situação. A Vânia já não falava mais comigo, meus filhos não queriam mais saber de mim, eu havia afastado as pessoas mais queridas e mais importantes da minha vida. Precisava retornar para o Brasil porque estava no meio de uma turnê importante, mas não tinha a menor condição de subir no palco e cumprir meus compromissos. Pensei: “Fodeu, vou me matar.”

Só que eu estava hospedado num hotel de dois andares, não adiantava pular da janela. Eu não tinha revólver, não havia fogão ali, então pensei: “Vou cortar meus pulsos.” Fui à farmácia, comprei uma pomada de xilocaína e passei, na esperança de não sentir dor. Cheguei a quebrar uma garrafa de vidro para ter um objeto cortante, mas não tive coragem de ir até o fim. Aquela não era a primeira vez que eu tentava me matar. Já tinha feito uma tentativa anterior com remédios e outra no vigésimo terceiro andar de um prédio. Subi no parapeito, olhei para baixo, mas não tive forças para me jogar.

De Seattle, liguei para o meu psiquiatra e falei: “Pelo amor de Deus, me interna, preciso parar de beber.” Cheguei ao Brasil no início de maio de 2016, consegui ficar dois dias limpo, a Vânia viajou comigo para o show em Fortaleza e consegui me apresentar. Depois comecei a frequentar um grupo do AA no bairro onde eu moro em São Paulo.

(...)

Continuo frequentando o mesmo grupo até hoje. Desde então, fiquei cinco meses sóbrio, tive uma recaída de três semanas e estou sóbrio há quase sete anos. 

Credito parte do “milagre” da minha sobriedade ao Gilberto Gil, meu ídolo ao lado do Caetano Veloso. Fui convidado para me apresentar com ele e a Gal Costa num show no dia 7 de outubro de 2016, em Brasília. O evento comemoraria o centenário de nascimento do Ulysses Guimarães, figura que é um símbolo da democracia brasileira. Um pouco antes, eu tinha voltado a beber e teria que participar de um ensaio para essa apresentação. Lembro que fui para lá alcoolizado. Consegui fazer o ensaio razoavelmente bem, mas percebi que não poderia continuar daquele jeito. Se eu me apresentasse bêbado ao lado do Gil, eu simplesmente ia arruinar a minha carreira. Não sei dizer o que aconteceu na minha cabeça, mas desde então parei de beber e não tive nenhuma recaída. 

(…)

Me entristeço pensando nos estragos que o meu alcoolismo e o meu abuso de drogas causaram na minha relação com os Titãs. Nos meus últimos cinco anos com a banda, eu era uma figura patética, atrapalhei muito e fiz coisas horríveis. A bebida alimentou o rancor, a inveja, a hostilidade, a insegurança e a paranoia dentro de mim. Hoje sei que eles são meus amigos e me amavam, mesmo quando estavam com ódio de mim.

Me sinto feliz de reencontrá-los mais de vinte anos depois, de cara limpa e com toda a experiência acumulada. Está sendo incrível me reaproximar nesses moldes, revisitar a nossa obra e perceber que são pessoas que admiro, amo e com quem tenho uma relação muito forte.

Há muitas camadas de emoções: reunir a banda com quem comecei a minha carreira, reencontrar o público que cresceu ouvindo as nossas músicas e ver a minha mulher, os meus filhos e netos reunidos na plateia – boa parte deles nem eram nascidos quando saí dos Titãs. Se fosse oito anos atrás, esse encontro não teria sido possível. A sobriedade me permitiu isso.”

 

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