Conheça a história da filiação do baiano à UBC e sua 'consolidação' como compositor, com a adaptação de 'Viva o Povo Brasileiro' para musical
Por Alessandro Soler
João Ubaldo segura, no extinto bar Tio Sam, no Rio, um exemplar do livro "UBC 70 anos: O autor existe", lançado em 2012. Foto: Vanessa Schütt
Num momento em que talentos do passado revivem no panorama midiático por meio da inteligência artificial, a obra real – e eterna – de um grande escritor lhe dá uma profissão nova, quase dez anos depois da sua morte. O escritor é João Ubaldo Ribeiro, cujo clássico “Viva o Povo Brasileiro” foi adaptado para um musical que estreou semana passada e vem fazendo sucesso no Rio de Janeiro. E a profissão nova é a de compositor: ele coassina as 30 canções cujas melodias foram compostas por Chico César, com letras fielmente extraídas do texto original, numa parceria póstuma de alto quilate artístico. Consuma-se assim o flerte de João Ubaldo com a criação musical anos antes de morrer, algo que o levou a pedir para ser filiado à UBC em 2010.
Na ocasião, João Ubaldo criara, com amigos do extinto bar Tio Sam, no Leblon, Zona Sul do Rio, duas marchinhas. Ato contínuo, começou a filiação. É o que explica Vanessa Schütt, coordenadora de Novos Negócios da UBC e testemunha em primeira pessoa de todo o processo.
“O João Ubaldo era frequentador assíduo do Tio Sam, assim como meu pai. Ficaram amigos e integraram um grupo que sempre se reunia ali. Um dia, João Ubaldo e outros três amigos do bar, entre eles o diretor de cinema e audiovisual Zoroastro Sant'Anna, criaram uma marchinha de carnaval chamada 'Margarida'. Foi um estouro. Todos assinaram com pseudônimos. O do João Ubaldo era Juca Pimentel (um dos sobrenomes reais do escritor). Zoroastro chegou inclusive a fazer um ótimo clipe da música”, lembra Vanessa.
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Nas semanas seguintes, João Ubaldo acompanhou de perto todo o processo de consumação da filiação. Paralelamente, outra música saiu da pena do escritor e dos seus parceiros.
“Ele realmente estava muito empolgado. Um dia, me mandou um e-mail se 'queixando': 'olha, fiquei sabendo que o Zorô e os outros já receberam a carteirinha da UBC, e a minha ainda não chegou... Quando vou recebê-la?' Imagina, um escritor genial, membro da Academia Brasileira de Letras, e pedindo a carteirinha dele”, diverte-se a gerente de Novos Negócios da associação.
Imagem da carteirinha de associado de "Juca Pimentel", pseudônimo de João Ubaldo como compositor. Foto: reprodução
A carreira de neocompositor teria ficado por aí — João Ubaldo morreu em 2014 —, mas o projeto criado pelo diretor e dramaturgo André Paes Leme e pela produtora teatral Andréa Alves para adaptar um dos mais famosos livros do escritor baiano mudou essa história. As 30 músicas coassinadas por ele e por Chico César engordaram bastante os registros do compositor João Ubaldo na UBC.
“A escritura de João Ubaldo tem som, tem tonemas, vamos dizer assim. Há um desenho melódico no que ele escreve, e busquei respeitar isso, até para manter uma proximidade com a obra original. Não senti que havia necessidade de inventar texto, de criar texto. Reescrevo, pego coisas que estão lá na frente e trago para o começo da canção, mas há muito respeito pela obra escrita”, explica Chico César à UBC.
A família de João Ubaldo autorizou a parceria, num processo negociado pela equipe da produtora Andréa Alves e cujos contratos foram detalhadamente elaborados pela advogada e educadora Marisa Gandelman, especialista em direitos autorais. Toda a parte de criação, como descreve Chico César, foi muito livre. Mas o cantor e compositor maranhense confessa que, no fundo, gostaria de ter tido “menos” liberdade:
“Lamento que ele não esteja mais vivo para podermos trocar, conversar, saber o que ele gostaria que fosse dito musicalmente ou não. Essa ausência dá uma liberdade, mas eu gostaria, preferia mil vezes, estar perto dele trabalhando, com o constrangimento da contemporaneidade ali, do tête-à-tête. Dali poderiam vir coisas muito boas. João Ubaldo tem muito humor na obra, e também tinha na vida, aquele riso que vinha de uma inteligência profunda e, ao mesmo tempo, um jeito simples de se colocar diante das coisas. Eu me sinto muito lisonjeado de me tornar parceiro de um autor que admiro tanto.”
Chico recorda ter lido “Viva o Povo Brasileiro” há “coisa de 20 anos” – “é fundamental para entender o Brasil e o brasileiro, sua subjetividade, como pensa, como ama, como odeia, como se organiza ideologicamente”. Agora, para escrever as letras, bastou consultar o roteiro escrito por André Paes Leme, num notável trabalho de adaptação fiel e, ao mesmo tempo, sintética da obra literária original para os palcos.
“Em 2011, comecei a trabalhar textos mais volumosos, históricos. Já tinha adaptado Guimarães Rosa e outros quando li o 'Viva o Povo' e propus à Andrea transformá-lo em musical. Fui para o doutorado, tive a oportunidade de investigar o tema e aproveitar para fazer um estudo mais aprofundado do livro como dramaturgia", descreve André Paes Leme. "Dez anos mais tarde, voltamos à carga e conseguimos o financiamento. Depois de todos esses anos, e de tudo o que a gente passou no Brasil, a obra parece ainda mais importante e necessária do que naquele primeiro momento”, defende o diretor, que já trabalhou com Chico César em outras adaptações de obras literária para musicais sob produção de Andrea, como “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (Guimarães Rosa) e “A Hora da Estrela” (Clarice Lispector).
O elenco do musical 'Viva o Povo Brasileiro' reunido. Foto: Annelize Tozetto
Para a produtora Andréa Alves, o texto genial de João Ubaldo ganha um novo percurso com essa adaptação, que tem a direção musical de João Milet Meirelles:
“A música é um veículo que transforma a linguagem, facilita a transmissão da mensagem. Torna as palavras do João Ubaldo mais populares. A música faz chegar de uma outra forma no emocional das pessoas e as leva a querer conhecer o livro, a lê-lo. Já está acontecendo, tenho ouvido muito isso”, ela afirma. “O texto era tão rico e profundo que o Chico, mesmo depois de ter feito 30 músicas, queria fazer mais. De uma tacada, João Ubaldo Ribeiro já tem dezenas de músicas como coautor (risos). Não é sensacional?”
O QUÊ: Viva o Povo Brasileiro (De Naê a Dafé)
ONDE: Teatro Riachuelo – Centro do Rio de Janeiro
QUANDO: Quinta a sábado, às 20h; domingo, às 18h. Até 1º de outubro. Depois, temporada por outras capitais brasileiras, entre elas São Paulo.
QUANTO: Inteiras de R$ 39 a R$ 120.
Mais informações no site da Sympla.
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