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Cassiano, que completaria 80 anos esta semana, ainda mantém mistérios
Publicado em 11/09/2023

Disco jamais lançado — e descrito como maravilhoso —, além de filme inédito podem explicar melhor a alma do genial soulman morto em 2021

Por Chris Fuscaldo, do Rio

Cassiano em foto de 1998. Divulgação/André Arruda

Mesmo cercado de um “vulto misterioso”, se vivo fosse, Cassiano completaria 80 anos no próximo sábado e certamente estaria quase ou totalmente convencido a liberar o lançamento de um álbum seu gravado na segunda metade dos anos 1970 e abandonado sem finalização. Em negociação neste momento entre gravadora, Sony Music, e família, o disco resgatado e finalizado pelos produtores Gorky e Kassin é peça de um quebra-cabeça que ajuda a entender melhor quem foi esse cara “genial e genioso”. As palavras do músico e produtor Max de Castro servem para resumir como a maioria dos parceiros, amigos e fãs descrevem Cassiano, um paraibano nascido em 1943, que se despediu do mundo em 7 de maio de 2021 deixando um legado enorme, apesar dos poucos discos.

“Nos anos 80, as pessoas já falavam do Cassiano como se ele fosse uma espécie de Zaratustra, um cara isolado em uma caverna. Tinha essa coisa de ser um cara genial e genioso. Não era fácil encontrar seus álbuns. Lá em casa, tinha uma conexão dele com meu pai (Wilson Simonal), que foi um dos primeiros a gravar Cassiano, em 1966: ‘Sem Você Eu Não Vivo’ (do álbum ‘Vou Deixar Cair’, de Simonal, pela Odeon) era uma música da fase pré-pilantragem, chamada de Jovem Samba. Cassiano era grato a Simonal por isso”, conta Max de Castro.

Jovem Samba foi, como define Max, um “interlúdio que aconteceu pós-Jovem Guarda”. Logo em seguida, a pilantragem se instalou entre os pretos da música brasileira (e alguns brancos, como Antônio Adolfo e sua Brazuca), e o paraibano migrou para um soul que virou escola.

Depois que Cassiano já havia lançado dois álbuns – “Imagem e Som” (RCA, 1971) e “Apresentamos Nosso Cassiano” (Odeon, 1973) –, um então Simonal que andava cantando em boates, em 1975, devido à famosa e triste história da briga com o contador, gravou “Partitura do Amor” no álbum “Ninguém Proíbe o Amor” (RCA). Nessa época, Cassiano começava a gravar um de seus mais aclamados álbuns, “Cuban Soul” (Polydor), lançado em 1976, cujos clássicos “Coleção” e “A Lua e Eu”, ambas parcerias com Paulo Zdanowski, o catapultaram ao posto de maior soulman do Brasil.

“Os críticos destacam o tripé Cassiano, Hyldon e Tim Maia como o responsável pela criação do que se chama de soul brasileiro. Rótulo interessante, mas, se tem um cara soul, esse é o Cassiano. Além de compositor de melodias interessantes, cantor de voz muito bonita e ótimo instrumentista, ele era também produtor, arranjador. Seu primeiro disco já veio com ‘Primavera (Vai Chuva)’. E ele ainda sobreviveu ao ostracismo, porque nunca foi esquecido, mesmo isolado”, diz o pesquisador musical Carlos Eduardo Lima.

Tim, Cassiano e Hyldon com seu disco conjunto "Velhos Camaradas", de 1992. Reprodução redes sociais

De “Cuban Soul”, ‘A Lua e Eu’, com seu clipe impressionista exibido pelo Fantástico, no qual Cassiano passeava de terno branco numa praia, foi a música que mais explodiu. Depois, foram 15 anos sem lançamentos. O último trabalho se chama “Cedo ou Tarde” (1991, Sony Music) e reuniu 11 faixas, a maioria delas com participações, de Ed Motta a Marisa Monte, passando por Sandra de Sá e Cláudio Zoli. Pela primeira vez, Cassiano gravaria “Eu amo Você” (com Sílvio Rochanel), faixa até ali registrada pelo jovemguardista Eduardo Araújo e por Tim Maia. Sandra foi de hit: “Primavera (Vai Chuva)”.

“Ele gostava de chegar no estúdio e armar vocais para mim. Um dia, eu gravando ‘Candura’ (para o álbum ‘Vale Tudo’, 1983, RGE), falei que a pausa era incrível, e ele respondeu: ‘Sandra, o principal da música está naquilo que você não ouve’. Isso ressoou para a minha vida. Ele era um gênio! O round que ele perdeu foi para ele mesmo”, reflete Sandra.

Nesse mesmo disco de 1991, Cláudio Zoli canta “A Lua E Eu” em um encontro com Cassiano depois de alguns anos de afastamento. Zoli virou aprendiz do soulman ainda adolescente, quando não imaginava que se lançaria na carreira artística profissionalmente. Com 15 anos, Cláudio se alternava entre a natação e aprender a tocar violão junto à banda de amigos. Frequentador da casa de Paulinho Guitarra – que já tocava com Tim Maia –, acabou sendo levado por ele para a gravação de um disco com Cassiano. “Comprido”, como o ídolo passou a chamá-lo, graduou-se no sítio de Jacarepaguá onde os músicos ensaiavam.

“Ele já era um ídolo, e eu tive a sorte de Paulinho reconhecer uma musicalidade em mim, mesmo tendo eu poucos recursos. Eu não tinha uma guitarra, por exemplo. Mas, com Cassiano e aqueles vinte músicos que iam gravar o disco pela CBS, 'fiz' o Berklee College of Music: aprendi tudo com ele, a forma de cantar, a de compor e as histórias do mercado. Ficamos ensaiando por uns três meses e entrei em um estúdio de gravação pela primeira vez para registrar esse disco que nunca saiu. Depois de uma convivência de cinco anos, precisávamos dar um vôo mais alto e montamos (com Paulo Zdanowski, Robério Rafael, Bolão e Ricardo Cristaldi) a Banda Brylho a partir do convite de Arnaldo Brandão. Cassiano ficou frustrado, e passamos cinco anos sem nos falar”, conta Cláudio Zoli.

Em 1982, a Banda Brylho se destacou com “Noite do Prazer” e apresentações no programa do Chacrinha. Cassiano, mais rabugento com o mercado e menos requisitado pela indústria, foi se isolando cada vez mais, principalmente depois de sofrer uma doença grave no pulmão. O soulman até participou de alguns discos de amigos – no do próprio Zoli, o de 1988 (EMI-Odeon), ele dividiu a autoria da faixa “Não dá pra entender” com Zoli e Ronaldo Santos.

Já o tal disco largado pelo caminho ficou nos arquivos da CBS – hoje Sony Music – até a chegada de Rodrigo Gorky por lá. Instigado a encontrar as fitas, o produtor não foi atendido pela gravadora em 2013, mas em 2017 – enquanto conversava sobre seu trabalho com Pablo Vittar – sentiu o caminho se abrir e aproveitou para acessar o espaço de armazenamento. Lá estavam as tais fitas de um disco que reunia dez músicas, estando sete delas com vozes, provavelmente guias, e três sem vocais. Não se sabe se por causa do abandono ou se a proposta era que houvesse música instrumental. Uma, “Murmúrio”, foi gravada por Tim Maia em 1978, no álbum “Tim Maia Disco Club” (Atlantic).

“Muita coisa a gente não sabe porque Cassiano era recluso e ressabiado com gravadoras. Diz a lenda que ninguém queria produzir, a CBS chamou um cara que, no meio do processo, teve um infarto, e logo depois o Cassiano teve um problema de saúde sério, e o disco foi abandonado. Mesmo incompleto, o disco é maravilhoso, com cordas, arranjos vocais incríveis, uma peça importante para entender a genialidade de Cassiano”, conta Gorky.

Com esse material na mão, Gorky convidou Kassin para trabalhar com ele na recuperação dos áudios. Juntos, os dois simularam a tecnologia da época para não mexerem mais do que o próprio Cassiano poderia aprovar.

“Vamos completar? Gravar coisas em cima? Não! Vamos mixar com o que existia na época: um pouco de reverb, um pouco de compressão, equalização e só. Nada de efeitos”, explica Gorky.

Kassin conta que só pegou os canais, organizou um pouco, fez "aquilo ficar compreensível". E só.

“O disco já estava ali. A bateria, por exemplo, já estava reduzida a um canal. A gente chegou a terminar o disco, o deixou todo mixado, e eu fiquei tentando um contato com Cassiano para ver se ele aprovava. Ele queria um encontro, não queria que enviasse o material. Esperamos a pandemia passar, mas infelizmente ele não sobreviveu. Hoje em dia, estamos conversando com a viúva, Cássia. Ainda tenho fé de que ela e as filhas, ao se recuperarem do baque, irão conseguir escutar e aprovar”, torce Kassin.

Detalhe da capa de "Apresentamos nosso Cassiano", um dos primeiros e mais míticos álbuns do gênio. Reprodução

Enquanto o disco não vem, mais pessoas que aprenderam de Cassiano e conviveram com ele vão juntando peças ao quebra-cabeças. Para Ed Motta, a referência é latente desde que estava na barriga da mãe, e Os Diagonais – banda que Cassiano tinha junto ao irmão, Camarão, e ao amigo Amaro – ensaiavam coro na casa de seus pais. Com Os Diagonais, Cassiano gravou um disco homônimo, em 1969 (Epic/CBS). Logo o tio de Ed, Tim Maia, impressionou-se com o talento do magrelo e o convidou para participar de seu primeiro álbum, o de 1970 (Polydor), como guitarrista e compositor de quatro músicas. Anos depois, em meados dos anos 1980, quando foi gravar o seu próprio disco de estreia, Ed Motta comprou todos os LPs de Cassiano e bebeu da fonte diretamente. Após seu lançamento, teve a oportunidade de conhecer e conviver com o ídolo.

“Cassiano cozinhava muito, sempre me chamava para almoçar. O prato que ele fazia com excelência era carne assada com purê de batata doce e feijão vermelho. Comíamos, e ele ficava tocando violão para mim. Ele foi um professor dando aula para um adolescente, e o maior talento de composição que eu vi na minha frente. Cassiano foi superíntegro com sua arte em um país onde a música foi prostituída. Ele tinha uma cabeça difícil de domar em um mercado especializado em domar estúpidos. O meio foi fechando as portas, boicotando. Ele se ressentia e preferiu se isolar”, conta Ed Motta.

Histórias variadas sobre o genial paraibano estão previstas para aparecer no documentário “Precisamos falar de Cassiano”, que o publicitário Christian Bernard está produzindo na garra há alguns anos. Entre as grandes descobertas de Christian estão desenhos muito bem-feitos pelo compositor.

“Ele era um exímio desenhista. Outra coisa que eu não sabia era que, apesar de recluso e magoado com o estabilishment, Cassiano era extremamente gentil. Ele não abriu mão do que acreditava: só queria subir num palco se fosse com mais de dez pessoas. Em compensação, pagava bem os músicos. E tratava todo mundo com carinho, educação. Levava flores para as meninas do balcão da gravadora... Foi um ser humano muito bacana, mas bastava uma fagulha para acontecer um rompimento. Ele brigou com quase todo mundo, mas no fim da vida foi se acertando com a maioria das pessoas”, revela Christian Bernard.

O filme já tem conta no Instagram e, lá, dá para ver uma quantidade enorme de nomes que contaram sua intimidade com Cassiano ao diretor. Como aquele disco dos anos 70, o doc ainda não tem previsão de ser lançado. E, assim, vão se mantendo por ora os mistérios de Cassiano.

 

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