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Envelhecer na música: entre uma carreira longeva e a discriminação pela idade
Publicado em 15/08/2023

Um inédito grupo de artistas com 70, 80 ou 90 anos segue criando e relevante, mas outros sofrem com o etarismo; especialistas comentam

Por Eduardo Lemos

A partir do alto à esquerda, Áurea Martins, Anastácia, Haroldo Costa, Dona Onete, Alaíde Costa, Gilberto Gil,  Maria Bethânia, Alceu Valença, Caetano Veloso, Lia de Itamaracá, Ney Matogrosso, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Simone, Michael Sullivan, J. Michiles, Djavan e Elba Ramalho

Na mesma sexta-feira em que completou 81 anos, em junho passado, Gilberto Gil lançou nas plataformas digitais uma versão ao vivo do clássico "Aquele Abraço". Era só mais uma novidade em meio a um pacote que inclui uma série de TV e uma turnê em que sobe ao palco com sua família. Uma semana antes do aniversário, Gil lotou três noites seguidas a casa de espetáculos Qualistage, no Rio de Janeiro. E, no começo de julho, já estava na Suíça para dar início à turnê que passou por países como Alemanha, Holanda, Grécia, Espanha, França e Itália. Foram 12 shows e um mês na estrada.

Dar um zoom na rotina de Gil pode ajudar a entender um fenômeno relativamente novo: os artistas setentões, oitentões, noventões que permanecem produtivos, populares e influentes em uma fase da vida em que se convencionou imaginá-los aposentados. Além de Gil, no Brasil seguem criativamente ativos, gravando discos ou fazendo turnês nomes como Elba Ramalho (71), Simone (73), Angela Ro Ro (73), Djavan (74), Odair José (74), Alcione (75), Cátia de França (76), Alceu Valença (77) Maria Bethânia (77), Chico Buarque (79), Edu Lobo (79), Lia de Itamaracá (79 anos), Marcos Valle (79), Jards Macalé (80), J. Michiles (80), Paulinho da Viola (80), Benito di Paula (81), Caetano Veloso (81), Anastácia (82 anos), Ney Matogrosso (82), Áurea Martins (83), Dona Onete (84), Jorge Ben (84), Tom Zé (86), Hermeto Pascoal (87), Alaíde Costa (87), Haroldo Costa (93 anos), Tony Tornado (93). E há muitos mais nessa lista.

Lá fora, a geração que cantou I hope I die before get old (espero morrer antes de envelhecer) não tem dado sinais de cansaço. Figuras como Paul McCartney (81), Bruce Springesteen (73), Iggy Pop (73), Mick Jagger (80) e Pete Townshend (78) - autor da frase acima - continuam enchendo estádios mundo afora. A imprensa inglesa até achou um nome pra eles: são os ageing rockers (roqueiros que envelhecem, em tradução livre).

Salif Keita (73), a Voz de Ouro da África, se apresenta ao vivo regularmente, Carlos Santana (76) está há meses em uma temporada de shows em Las Vegas e Joni Mitchell (79) voltou aos palcos depois de muito tempo reclusa. Dionne Warwick (80) lançou músicas inéditas meses atrás, Bob Dylan (82) viaja o planeta com a turnê "Rough and Rowdy Days", Buddy Guy (87) está com a agenda lotada, Willie Nelson (90) tem dezenas de shows agendados até o fim do ano, e Marshall Allen segue liderando a Sun Ra Arkestra do alto de seus 99 anos.

Segundo a antropóloga e escritora Mirian Goldenberg, autora do livro "A invenção de uma bela velhice" (Editora Record), a concentração de tantas estrelas da música com mais de 70, ativas e relevantes, é sem precedentes.

"Praticamente pela primeira vez, temos uma geração de velhos que não se comportam como velhos. Não se aposentam da vida. Não se escondem dentro de casa ou em atividades de velhos. Eles continuaram a fazer o que eles sempre amaram fazer. O meu melhor exemplo é o Paul McCartney. Os shows dele têm três horas de duração. Ele poderia fazer um espetáculo de uma hora, e todo mundo ia sair feliz. (Mas) tem tesão no que faz. Essa geração tem tesão no que faz", diz ela em conversa com a UBC. "Assim como esses personagens revolucionaram os comportamentos, valores e discursos nos anos 60 e 70, eles não se aposentaram de si mesmos. Continuam dançando, cantando, namorando, transando, viajando, se divertindo, realizando seus projetos de vida.”

O que também permaneceu é a capacidade de boa parte desses artistas de chamar a atenção da mídia e exercer influência na opinião pública. Esses poderes têm ajudado a dar maior visibilidade ao tema do envelhecimento saudável e ajudado a combater a chaga do etarismo, que, na definição da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, "consiste no preconceito, na intolerância, na discriminação contra pessoas com idade avançada.”

DESIGUALDADE DE OPORTUNIDADES E ESPAÇOS

Se, por um lado, os medalhões e algumas exceções continuam recebendo oportunidades na música, de outro é grande o número de mais velhos que estão se sentindo à margem da indústria. Em uma recente postagem em rede social, o jornalista e produtor Marcus Preto, que já trabalhou com Gal Costa, Erasmo Carlos e Tom Zé, atacou o descaso do mercado musical brasileiro com os artistas acima de 70 anos ao questionar "quantos artistas 70+ estão escalados para tocar no seu festival preferido?, quantos foram apoiados por aquele edital que preza por diversidade?".

O post repercutiu entre artistas e profissionais da música. O compositor Michael Sullivan, 73, autor de hits gravados por Roberto Carlos e Tim Maia, desabafou:

"Eu sei na pele como é difícil! Quando consigo alguma das conquistas citadas acima, sei que vivi um milagre.”

Marcus Preto explica à UBC:

"Quando fiz o post, eu falava mesmo de nomes como Alaíde Costa, Dona Onete, Áurea Martins. E também Claudya, Claudette Soares, Tetê Espíndola, Michael Sullivan, Odair José, Hyldon e outros tantos artistas geniais que foram colocados à margem. É para esses que precisamos olhar.”

Isso não significa que esses artistas tenham de ser alçados de volta ao mainstream, de acordo com o produtor.

"Não há problema algum em fazer uma carreira à margem. Desde que haja espaço real para a margem, cuidado com a margem, dignidade na margem. Uma música plural não vive só de Beatles, Dylan e Stones.”

OPORTUNIDADES E DESAFIOS PARA MARCAS E FESTIVAIS

A publicidade já está se movimentando na direção de uma inclusão maior, segundo a consultora na área de pesquisa de mercado e Business Director da MS Consumer Intelligence, Mirian Steinbaum. Ela afirma que as marcas já entenderam o potencial de consumo da população 60+ e, por isso, vão se aliar aos artistas da música que conseguem falar diretamente com este público.

"A inclusão de pessoas de mais de 60 é uma mudança que irá se impor, diante da própria estrutura da nossa pirâmide etária ou da nossa composição demográfica. Mas o público dessa faixa etária quer ver um show em um grande estádio, não apertado e de pé na pista. Estamos prontos para repensar também esses espaços?", questiona.

Segundo a Diretora de Marketing e Festivais da Time For Fun, Francesca Altério, dar protagonismo aos artistas sessentões, setentões, oitentões, noventões é uma das prioridades na hora de definir o line-up dos festivais realizados pela empresa.

"O público de festival é um público majoritariamente jovem, mas ávido por consumir artistas que fazem parte da história da música popular brasileira. É emocionante ver essas pessoas tendo a oportunidade de ter contato com esses artistas e cantando todo o repertório durante o show", relata a executiva.

Em festivais recentes, como Doce Maravilha e Turá, artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Sandra de Sá e Zeca Pagodinho receberam tratamento de headliners.

"O Turá foi criado para celebrar a mistura e diversidade da música brasileira, portanto nos orgulhamos em sempre ter nomes consagrados da música se apresentando com novos talentos”, afirma Altério.

A DESEJÁVEL MISTURA DE GERAÇÕES

Nesta jornada em busca de espaço, oportunidades e reconhecimento, os artistas mais velhos têm recebido um suporte fundamental das gerações mais novas. Seja nos estúdios e nos palcos, é cada vez mais natural a colaboração entre personagens que, em alguns casos, têm meio século ou mais de diferença de idade. São inúmeros os exemplos.

É o caso da cantora e compositora Tulipa Ruiz, que em 2019 lançou um disco em parceria com João Donato - ela com 40 anos, ele com 84. Ou da parceria entre o grupo Jovem Dionísio, com integrantes na casa dos 25 anos, e o compositor Marcos Valle, com 79. Um marco dessa mistura de gerações se deu entre 2006 e 2012, com a trilogia de discos "Cê", em que Caetano Veloso gravou e se apresentou acompanhado de jovens músicos da cena carioca como Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes.

Em troca de emails com a UBC, o cantor, compositor e produtor Rômulo Fróes reconhece que está ficando "um especialista nos oitentões". O músico paulistano fez parte da turma que idealizou e produziu os bombásticos discos que Elza Soares lançou na década passada, como "A Mulher do Fim do Mundo" (2015)  e "Deus É Mulher" (2018). Ele também tem produzido trabalhos de Jards Macalé e Benito di Paula.

Na construção dessa relação, Froés identifica que há, primeiro, uma intensa admiração dos mais novos por seus antecessores.

"Uma década que se impôs como a mais influente para nós foi a década de 1970, não por acaso, talvez o auge da produção desses artistas hoje na faixa dos oitenta anos. O som da música popular brasileira do começo deste século, que já foi nomeada de Nova MPB, deve muito ao som dos anos 1970, sobretudo no aspecto de transgressão e inventividade que aquela geração carregava em sua música", explica.

Isso não quer dizer que episódios de preconceito não aparecem de forma mais velada. Fróes recorda que houve uma inicial incompreensão de parte da crítica musical e do público de Elza Soares quando o disco "A Mulher Fim do Mundo" foi lançado.

"Houve perplexidade com a sonoridade do disco produzido por nós, a princípio visto quase como um desrespeito a uma artista à época já com 85 anos, como se estivéssemos violentando uma trajetória pura e intocável. Como se Elza, durante toda a sua carreira, não tivesse realizado não apenas uma, mas algumas revoluções.”

Este, talvez, seja o maior segredo: enquanto houver algo a dizer, algo a mudar nas estruturas da música e da sociedade, não há por que parar. É o que afirma Chico Ribeiro, líder no departamento de A&R da UBC. Aos 77 anos, ele próprio é um exemplo de longevidade no mercado, com ampla experiência em diferentes pontas do mercado: gravadora, editora, sociedade de gestão coletiva:

“A música é um dos setores em que, mesmo com décadas de experiência, você continua a ter sempre só um leve conhecimento”, ele ri. “E isso torna a coisa divertida. O desafio é constante, você está sempre aprendendo, descobrindo coisas novas. E isto é o que nos move, na carreira e na vida. Como diz o Ney (Matogrosso), o negócio é estar sempre atentos aos sinais.”

Ribeiro afirma que, nas muitas décadas que dedicou ao mercado, desde 1965, quando começou, nunca viu um preconceito deliberado contra artistas e criadores mais velhos — “principalmente entre os compositores, cuja idade muitas vezes nem sequer é conhecida” —, mas admite que as oportunidades não são iguais para todos. Mesma opinião tem Dona Onete. Aos 84 anos, a paraense vencedora do Troféu Tradições da UBC em 2022 afirma que jamais sofreu discriminação por sua idade. Mas enxerga, sim, uma diferença de gênero no acolhimento a artistas mais velhos.

"Para o homem é muito mais fácil", sentencia em conversa por telefone.

Muitos fãs perguntam como ela conseguiu chegar até aqui gravando e se apresentando mundo afora. Um dos seus segredos não tem nada a ver com música.

"Eu não me meto com a tecnologia”, diverte-se. “Não mexo com computador. Só vejo televisão e, mesmo assim, só o que me interessa. Prefiro ficar com a minha mente bem ativa e cuidar mais de mim.”

Se a lista dos artistas 70+ que seguem trabalhando é grande, outra lista começa a aumentar. É a dos que decidiram parar com a cansativa rotina de shows, como é o caso de Milton Nascimento (80) e Elton John (76). Nestes dois casos, porém, as despedidas foram realizadas em alto astral, com os artistas apresentando espetáculos de alta qualidade, recebendo atenção da mídia e vendo seus shows lotados.

"Para mim, o verdadeiro combate ao etarismo é isso: mostrar que a velhice não é um fim. Você pode até se aposentar do trabalho, mas você não precisa se aposentar da vida", encerra a antropóloga Mirian Goldenberg.

LEIA MAIS: Como foi a homenagem da Câmara dos Deputados aos 80 anos da UBC


 

 



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