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Artigo: Caetano, um dos maiores poetas líricos, por Antonio Cicero
Publicado em 05/12/2023

Imortal da ABL prega que o homenageado desta terça (5) com o Prêmio UBC faz poesia com suas letras, ao contrário do que ele mesmo diz

Por Antonio Cicero, do Rio*

Caetano Veloso. Foto: Leo Aversa

É imensa a importância de Caetano Veloso na cultura brasileira. Que se trate de um cantor e compositor extraordinário é, já há bastante tempo, um fato internacionalmente reconhecido. Além disso, porém, considero importante que os brasileiros se deem conta, entre outras coisas, que Caetano, homenageado desta terça-feira (5) com a entrega do Prêmio UBC 2023, é um dos grandes poetas da nossa língua.

Curiosamente, o próprio Caetano frequentemente observa que, tendo sido feitas para serem cantadas e não lidas, suas letras não cheguem a constituir poemas. Pretendo aqui questionar essa ideia.

Em primeiro lugar, penso ser equivocada a denominação de “letra” para todos os discursos que acompanhem músicas. Penso que há três tipos de tais discursos:

1º Letras de canções:

O que efetivamente pode ser chamado de “letra” são os discursos escritos para que uma música dada se torne uma canção. Esses discursos dão certo sentido – por exemplo, um sentido amoroso – à composição. Dado que as letras são complementares às músicas que acompanham, na maior parte das vezes, quando separadas de tais músicas, percebe-se que elas não possuem valor poético. Na verdade, a prova cabal de que as letras são secundárias em relação às músicas que as provocam é o fato de que somos capazes de apreciar até mesmo letras cantadas em línguas que desconhecemos, às quais então atribuímos o sentido que desejamos.

2º Poemas escritos:

Em segundo lugar, temos os poemas escritos, aos quais se acrescenta uma melodia. Ao contrário das letras, trata-se aqui de poemas que foram escritos para serem lidos, e não cantados. Caso eles já houverem sido verdadeiros poemas antes de serem musicados, é óbvio que não deixam de ser verdadeiros poemas após serem musicados. Observemos que grande parte da poesia não musicada frequentemente exige, para ser apreciada, que quem a leia ou ouça tenha uma relativa cultura letrada e, muitas vezes, até uma cultura literária. Ora, como a música – em particular a música popular – é, como já observamos, normalmente apreciada intuitivamente, sem necessidade de nenhuma cultura prévia, até mesmo um poema que possa ser considerado “difícil” por alguém que não possua nenhuma cultura literária pode ser apreciado ao ser musicado.

3º Poemas líricos:

Em terceiro lugar, temos a poesia lírica. Hoje em dia, essa expressão é empregada de maneira confusa, de modo que a poesia lírica é normalmente tomada principalmente como aquela que se diferencia dos gêneros da poesia épica e da poesia dramática. Desse modo, considera-se o gênero lírico, conforme a definição dada, por exemplo, pelo grande dicionarista Caldas Aulete, o gênero que é “consagrado especialmente à expressão do entusiasmo e dos grandes sentimentos individuais e que compreende a ode, a canção, a balada, o soneto”.

É evidente, porém, que, etimologicamente, a poesia lírica consiste, em primeiro lugar, naquela que é composta simultaneamente – e em sintonia – com a música produzida por uma lira. Os primeiros poemas líricos foram criados em culturas que ainda não dispunham da escrita. Tudo indica que tais eram, por exemplo, os poemas da poeta grega Safo de Lesbos, assim como os de Alceu, também de Lesbos, que viveram no século VII a.C. Seus poemas, tendo sido inicialmente decorados pela cultura oral e, finalmente, escritos são, desde a Antiguidade, considerados verdadeiras obras-primas. Isso não quer dizer, evidentemente, que todos os poemas líricos sejam necessariamente bons poemas. Não há nenhuma garantia de que um poema lírico não seja um falso poema, isto é, péssimo.

Pois bem, dado que a lira consiste num instrumento musical, podemos tomá-la como representativa de qualquer instrumento através do qual se produza música, como um violão ou um piano. Assim, as palavras que acompanham um samba criado por um violonista numa comunidade analfabeta ou semianalfabeta, por exemplo, não deixam de ser poemas líricos.

Além disso, também são poemas líricos aqueles que tenham sido produzidos por poetas que também sejam compositores letrados. Caso tais compositores sejam poetas verdadeiros, isso se manifestará nos seus poemas. Aqui voltamos a Caetano Veloso.

Consideremos, em primeiro lugar, a bela canção “A Voz do Vivo”, cujas palavras podem ser lidas como um poema:

 

A Voz do Vivo

Quem já esteve na lua viu

Quem já esteve na rua também viu

 

Quanto a mim, é isso e aquilo

Eu estou muito tranquilo

 

Pousado no meio do planeta

Girando ao redor do sol

 

Vejamos qual é a voz do vivo. “Quem já esteve na lua viu”. Pensamos, inicialmente: Quem vive no mundo da lua é, normalmente um louco. Mas em seguida lemos: “Quem já esteve na rua também viu”. Assim, não é apenas o louco, mas todo o mundo que deve ter visto o que o poeta viu. Continuemos: “Quanto a mim, é isso e aquilo / Eu estou muito tranquilo”. À primeira vista, ele está afirmando que é louco e tranquilo. Contudo, a próxima estrofe diz: “Pousado no meio do planeta”. À primeira vista, parece muito pretensioso que alguém considere estar pousado no meio do planeta. O verso seguinte, porém, diz: “girando ao redor do sol”. Ora, todos nós estamos girando ao redor do sol. Isso nos faz, de repente, entender que cada um de nós também se encontra pousado no meio do planeta e girando ao redor do sol. Mas a verdade é que, antes de ler o poema, não nos dávamos conta de algo tão óbvio e tranquilizante. Foi o poema que nos ensinou.

Mas, além de belos poemas como esse, que podem ser facilmente lidos e compreendidos, Caetano produz também, em várias canções, poemas que, embora verdadeiros, foram feitos não para serem lidos, mas ouvidos. Assim ocorre, por exemplo, com “O Quereres”. Esse poema é imediatamente considerado longo demais para ser um poema lírico. Entretanto, quando como somos capazes de nos livrar dessa maneira tão convencional de considerar a poesia lírica, podemos apreendê-lo como um poema extraordinário, em que o poeta mostra e, curiosamente, exalta a contradição entre diferentes maneiras de apreender o mundo. Uma maneira é a convencional, isto é, a que está na moda. Em oposição a isso, ele, ao contrário, é até capaz de curtir provisoriamente até mesmo a atitude aparentemente reacionária de, em determinado momento, parecer burguês. As contradições como, por exemplo, entre querer revólver ser coqueiro, querer dinheiro e ser paixão, querer romântico e ser burguês etc., podem fazer-nos sorrir e viajar:

 

O Quereres

Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alta eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo eu sou o irmão
E onde queres cowboy eu sou chinês

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

Onde queres o ato eu sou o espírito
E onde queres ternura eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói

Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima, e nunca a dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero e não queres como sou
Não te quero e não queres como és

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock'n roll
Onde queres a lua eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro eu sou obus

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim

 

Enfim, dado que há inúmeros poemas dessa qualidade no livro "Letra Só", de Caetano Veloso, considero-o um dos nossos maiores poetas líricos.

 

*Cicero é poeta, compositor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e associado da UBC

 

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