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Análise: como a futura lei da UE sobre IA pode impactar a música
Publicado em 18/12/2023

Especialistas comentam aspectos do esboço recém-aprovado, e que ainda tramitará no Parlamento Europeu, além de iniciativas de alguns países

Por Eduardo Lemos, de Londres

A União Europeia avança na criação de uma legislação sobre uso de inteligência artificial. No último dia 9, os países do bloco definiram um texto-base do chamado AI Act (ou Lei da Inteligência Artificial), que, agora, será levado para apreciação do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu para ter força de lei.

O entendimento deve influenciar as discussões sobre regulamentação de IA que estão em andamento em países como Brasil, Estados Unidos e Reino Unido.

A nova regulamentação prevê, entre outros pontos, uma "obrigação de transparência" por parte das produtoras da tecnologia, como Chat GPT e Google, em que as empresas devem esclarecer quando um conteúdo é criado ou manipulado por IA. Além disso, as criações devem respeitar as regras europeias já existentes sobre direitos autorais. O não cumprimento desta e de outras regras pode dar em multas pesadas, como a que prevê o pagamento de 7% da receita global dessas companhias.

Especialistas consultados pela UBC dizem que, embora o texto não trate especificamente da utilização de IA na música, ele já permite sondar quais seriam os impactos para a indústria musical. Há uma clara preocupação dos legisladores em proteger os direitos autorais, observa a advogada, professora da FGVLaw e doutora pela FDUSP Fernanda Galera Soler.

"O AI Act traz em suas previsões o dever de transparência, detalhando que a tecnologia desenvolvida deverá fornecer informações sobre o tipo de conteúdo utilizado para o treinamento e funcionamento da IA, de acordo com o modelo a ser proposto. Essa previsão permitiria que os titulares de direitos apurem se houve a utilização de suas obras por qualquer tecnologia. Ou seja, um aplicativo que desenvolve música deverá informar quais conteúdos estavam presentes em sua base de dados. A partir dessa informação, será possível verificar se o uso foi autorizado ou não", explica.

Para o advogado Gustavo Deppe, especialista em direito autoral, "a discussão do Parlamento Europeu é importantíssima sob muitos aspectos". Ele destaca principalmente os temas relacionados à segurança na utilização de inteligência artificial.

"Há três frentes principais em que essa transparência vai gerar impacto: quanto à obrigação de informar que o conteúdo mostrado ao público é gerado por IA; quanto à preocupação em desenvolver sistemas que não gerem conteúdo ilegal (que fira direitos autorais e propriedade intelectual alheia, por exemplo); ou na obrigatoriedade de informar quais conteúdos protegidos por direitos autorais foram utilizados para o treinamento desses softwares", resume.

LENTIDÃO, ‘MÃO PESADA’ E POTENCIAL ECONÔMICO: COMO OUTROS PAÍSES ESTÃO REGULANDO A IA

A movimentação política em torno do tema, como a da União Europeia, é crucial para coibir riscos, adiciona Deppe:

"A inteligência artificial evolui de maneira exponencial. A lentidão do direito e da nossa própria percepção do desenvolvimento tecnológico pode levar a danos irreparáveis, se não forem rapidamente suprimidos pelas autoridades.”

O problema é que governos não são exatamente conhecidos por sua rapidez em reagir aos desafios impostos pelo surgimento de novas tecnologias, mas a impressionante evolução da IA em 2023 tem forçado alguns países a pelo menos iniciar conversas rumo a uma proposta de regulação.

Há poucos dias, o governo da Austrália anunciou a criação de um grupo para debater direitos autorais a partir do uso de inteligência artificial e suas implicações na indústria criativa, e com a presença de 22 organizações musicais do país. No Brasil, o projeto de lei 759/23, criado pelo deputado federal Lebrão (União Brasil-RO), trata da regulamentação dos sistemas de inteligência artificial (IA) no país e determina que o Poder Executivo defina uma Política Nacional de Inteligência Artificial.

"Cabe lembrar que a legislação brasileira obriga que a utilização de qualquer conteúdo protegido por direito autoral - salvo pouquíssimas exceções - necessita de autorização por seus titulares. Se uma obra ou fonograma ‘novos', gerados por IA, utilizarem conteúdos alheios sem a devida anuência, infringirão direitos", observa Gustavo Deppe.

No Reino Unido, o secretário responsável pela área de propriedade intelectual do atual governo, Viscount Jonathan Camrose, disse em novembro que não há previsão de que o país adote uma lei sobre inteligência artificial no curto prazo. Segundo ele, o governo não quer "pesar a mão" em leis que podem prejudicar o crescimento deste mercado. No entanto, a indústria cultural do Reino Unido tem alertado o governo de que obras intelectuais, incluindo livros e músicas, estão em perigo desde que o país começou a discutir uma mudança na lei de direitos autorais que permitiria a mineração de dados, uma técnica usada para processar e explorar grandes conjuntos de informação para a criação dos sistemas de IA generativa — grande parte dessa informação, protegida por copyright.

"A possibilidade de mudança causou uma série de preocupações na indústria da música. Apesar de muitos entenderem que a mineração em si não é um problema, eles acreditam que ela deve ser objeto de um licenciamento específico, uma vez que é necessária a reprodução da obra para a sua utilização. De tal forma que, como nova forma de uso da obra, existe a necessidade de prévia autorização do titular de direitos e da devida remuneração", comenta Fernanda Galera Soler, que atualmente vive no Reino Unido.

Segundo ela, "após os apelos da classe artística como um todo, o projeto está com o seu andamento paralisado, sem grandes atualizações no último semestre", mas é uma demonstração clara da "necessidade de debates sobre novas formas e modelos de negócio para adequar interesses da classe artística e do desenvolvimento tecnológico".

Em agosto deste ano, a China implementou a sua regulamentação para o conteúdo gerado por Inteligência Artificial. Especialistas classificaram as diretrizes como mais flexíveis do que as regras que vigoravam anteriormente no país, já que a China está de olho no potencial econômico deste mercado para as empresas de tecnologia locais. Em um ritmo mais lento que as principais potências do mundo, os Estados Unidos têm se movimentado para "governar essa tecnologia", como disse o presidente Joe Biden ao anunciar a primeira regulamentação de inteligência artificial do país, em outubro deste ano.

Para Gustavo Deppe, China e Estados Unidos "são referências não somente por serem as duas grandes superpotências atuais, mas também pela abordagem utilizada em suas regulações. A restritividade na utilização da tecnologia ante o grande público caminha junto à maior flexibilidade para pesquisas científicas, deixando claro que há uma corrida para o domínio, o mais rápido possível, da inteligência artificial. Se essa flexibilidade jogar a favor do desenvolvimento de ferramentas para que artistas tenham seus direitos garantidos e possam criar novas formas de expressão, será extremamente positivo não só para os criadores, mas para os consumidores também", opina.

REGULAR É PRECISO, MAS NÃO SÓ

Embora acreditem que iniciativas de regulamentação do uso de IA mundo afora podem trazer resultados positivos para a indústria da música, os especialistas creem que apenas criar leis não é suficiente.

"É preciso que haja, em conjunto, algumas iniciativas, como fomento para pesquisa e criação de novas tecnologias que facilitem essa proteção, maior conscientização de titulares de direitos autorais para evitar utilizações ilegais, entre outras ações práticas, que vão além do aspecto legislativo", diz Gustavo Deppe.

Ele projeta que a proteção de direitos autorais será "bem feita" através da própria inteligência artificial.

"O perigo está no que tange à questões de segurança e na falta de regulação e responsabilização das grandes empresas de tecnologia e redes sociais. A veiculação de propagandas criminosas é uma das grandes ameaças nesse contexto, pois já é possível manipular vídeo e áudio com verossimilhança o suficiente para enganar usuários desatentos, que ficam mais suscetíveis a fraudes e golpes".

Para Fernanda Galera Soler, "a regulamentação é uma boa solução, mas existem muitas formas de explorarmos essa ferramenta que ainda são pouca discutidas, mas que podem ser a chave para a construção de uma indústria cada vez mais forte e consolidada". Ela cita como exemplo a música "Now and Then", lançada pelos Beatles em 2023 após um trabalho de restauração da voz de John Lennon realizado por inteligência artificial. Outro ponto favorável citado pela advogada são as análises de violações de direitos, como a realizada pelo algoritmo do YouTube.

"Se pensarmos na remuneração, a automação vem auxiliando diversos órgãos nos cálculos de receitas, controle de execuções e distribuição de recursos. A utilização de uma IA, bem treinada, poderia favorecer ainda mais esse potencial, desenvolvendo cada vez mais uma indústria eficiente, um controle sobre a exploração e a devida informação ao titular de direitos sobre a sua música", prevê. "A IA não precisa ser um problema, ela pode ser algo muito relevante e auxiliar muito o artista na exploração, gestão e controle da sua música. A questão é como utilizamos essa ferramenta. Pensando nesses casos, não precisamos ter medo da tecnologia, mas sim estudarmos formas de utilizá-la como ela deve ser: uma ferramenta que auxilia e facilita o desenvolvimento humano", encerra Soler.

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