Instagram Feed

ubcmusica

No

cias

Notícias

Etarismo na música afeta artistas, mas também profissionais dos bastidores
Publicado em 14/03/2024

Trabalhadores de várias áreas, da criação e produção à gestão de selos e gravadoras, comentam problema que atinge mais as mulheres

Por Andréia Martins

A cantora e compositora Anastácia, 83 anos: "Homem não envelhece". Foto: Coerana Produções

Com temas como racismo e sexismo já consolidados no debate público, o etarismo, ou discriminação por idade, vem ganhando espaço nas conversas do mercado musical. No mundo do trabalho como um todo, os mais velhos há muito tempo já sentem na pele como as empresas os sub-empregam: uma pesquisa da consultoria Ernest & Young de 2022, com 200 companhias brasileiras, mostrou que os trabalhadores com mais de 50 anos não passavam de 10% do quadro. Pouquíssimo, se pensarmos que, até 2040, os profissionais com mais de 45 anos serão 60% do total nacional.

Na música, e em outras artes, tradicionalmente ocorria algo diferente: artistas mais velhos, sobretudo os mais consagrados, sempre tiveram espaço - e respeito. Mas a lógica da eterna juventude, refletida todos os dias na mídia e nas redes sociais, vem se impondo. Tanto quem sobe ao palco como quem atua nos bastidores - sobretudo as mulheres - sofre com etarismo.

QUESTÃO CULTURAL

Apesar de sentir uma pequena onda positiva de mudanças pontuais no mercado, a cantora, compositora e produtora fonográfica Ana Lélia diz que sente na própria pele, “e na pele de tantas mulheres acima de 40 anos, um afunilamento de oportunidades.”

“A proporção de artistas mais velhos em evidência é infinitamente menor do que a de artistas jovens. A questão que quero colocar aqui é a seguinte: eu vejo, sim, artistas mais velhos, porém já consagrados, presentes na cena. E isso é valiosíssimo. O que eu não vejo são artistas mais velhos que não são conhecidos nacionalmente sendo inseridos. Esse é o grande desafio”, afirma a artista, que, depois de anos atuando como professora, se lançou à música, já avançada na casa dos 40 anos.

Para ela, “o mantra de que ‘a beleza jovem vende mais' cria esse ciclo vicioso no qual toda a sociedade está inserida.” Mesma opinião tem Cris Perez, assessora de comunicação e marketing digital com passagem por algumas gravadoras.

“Os artistas sempre sofreram essa pressão pela imagem ideal. E, mesmo antes, a necessidade de ser jovem era requisito para a fama. O artista precisa que seu público se espelhe nele. Assim se formam os ídolos. E a imagem vendida desde sempre do rockstar/popstar é a da juventude eterna, rebelde, criadora de tendências”, diz.

Cris Perez. Arquivo pessoal

Em segmentos não diretamente envolvidos na roda-viva das redes sociais e das suas estratégias de marketing centradas na juventude, Perez acredita que há espaço para artistas mais velhos serem lançados ou continuarem na carreira. Ela cita o exemplo de bandas como Paralamas do Sucesso, Capital Inicial e Titãs, que lotam estádios até hoje mesmo sem lançarem grandes hits nos últimos anos.

“Todos os setores musicais esperam por artistas mais novos, mas, se o trabalho for bom, original, novo, é possível fazer acontecer. Tenho trabalhado com artistas mais velhos e, com uma boa estratégia e trabalho duro, venho conseguindo bons resultados. A relevância que o meu artista consegue acaba sendo intimamente relacionada a meu trabalho. Quando um artista desconhecido começa a ganhar relevância, há logo uma procura pela pessoa por trás dessa exposição. O bom trabalho costuma ser reconhecido, senão pelos fãs dos artistas, por pessoas do mercado fonográfico, como empresários, investidores, produtores”, analisa Cris Perez.

Quem está de acordo com ela é Eliana Brito. Aos 70 anos, com longas passagens por gravadoras como Sony e Warner, a diretora-executiva da Track Marketing, que faz assessoria e marketing para vários artistas, aponta que há que se usar os pontos positivos dos mais experientes: contatos e uma maior compreensão do mercado fonográfico, que não começou hoje.

“Essa barreira a nós, os mais velhos, começa nos próprios profissionais do mercado. Todos acham que o novo é mais atualizado, mais cheio de ideias, mais criativo… e que nós somos ‘velhos’, com ideias ultrapassadas. E assim é com os artistas”, comenta.

Com relação ao trabalho com artistas mais velhos, Brito diz que a bagagem é uma vantagem desses nomes. Se vale a pena apostar neles? “Com certeza”, ela diz:

“O mercado mudou. Hoje, o que está aí são sucessos, e não hits. É tudo muito instável. Se não for sucesso em 15 dias, muda. E esses artistas que estão nas ‘prateleiras dos antigos’ são fazedores de hits, hits que fazem com que as tours se esgotem. Falo de Guilherme Arantes, com turnê esgotada no Teatro Municipal (do Rio de Janeiro), de Roberto Carlos, Djavan, Martinho da Vila, Alcione... São artistas que se preocuparam, ao longo da carreira, em atingir o público.”

Eliana Brito. Arquivo pessoal

EM ÁREAS TÉCNICAS, DISCRIMINAÇÃO MENOR… SE VOCÊ FOR HOMEM

Do lado de profissões mais técnicas, a discriminação parece ser menor, sobretudo para os homens. Leo Garrido, engenheiro de som que já atuou com nomes como Roupa Nova, A Cor do Som, Moraes Moreira, Kleyton e Kledir e, hoje, trabalha com os Paralamas do Sucesso, sente que a experiência que acumulou lhe abre portas.

“Quanto à idade, nunca percebi que o mercado rejeite esse ou aquele técnico por conta disso, pois a experiência nessa profissão é tudo. Os professores do assunto hoje são os mais antigos na profissão, que somaram além de estudos como autodidatas, a grande quantidade de trabalho ao longo dos anos. Acho que, nessa área, o profissional faz o seu salário assim como as suas oportunidades.”

Nunca é demais lembrar que a participação das mulheres nesse tipo de área do mercado musical é baixíssima - qualquer que seja a idade, como comprovam levantamentos variados, entre eles a pesquisa anual Por Elas Que Fazem a Música, da UBC. Para Cris Perez, a realidade delas é sempre mais difícil.

“Como em toda profissão, ainda há discrepâncias nítidas de tratamento e valorização em vários setores da atividade musical. Tem-se falado cada vez mais sobre as diferenças de cachê e premiação entre artistas homens e mulheres. Se isso ocorre no mainstream, imagina no backstage”, afirma.

Ana Lélia reforça a diferença dada ao homem e à mulher em todas as áreas do mercado.

“O homem envelhece e os cabelos brancos já se tornam sinônimo de ‘sabedoria, charme’. Já para a mulher, cabelos brancos, rugas denotam descuido com a aparência. O que é pra ser visto como força, por imposição cultural, acaba se tornando nosso calcanhar de aquiles”, raciocina.

Ana Lélia. Divulgação

A cantora e compositora Anastácia, hoje com 83 anos, afirma que não é de hoje que "as mulheres mais novas têm um campo mais aberto de trabalho, enquanto as mais velhas ficam para trás.”

Ela diz ter visto isso acontecer com muitas cantoras do forró. 

“Já o homem não envelhece", resume. "Eu mesma tiro sarro da minha idade e já digo no palco que sou a bisa do forró. Como sou muito alegre, acabo fazendo humor em cima dessa história. Eu não sou uma grande estrela, mas sou reconhecida. E não podemos bater nessa tecla sem mostrar um trabalho consistente. Enquanto tiver minhas cordas vocais, vou continuar fazendo o que eu gosto.”

COMO COMBATER O ETARISMO

Presidente da Warner por mais de 15 anos, Sérgio Affonso sabe como poucos a dinâmica da indústria fonográfica. Atuou como diretor de marketing, promoção, A&R e outras áreas, trabalhando com artistas como Milton Nascimento, Elis Regina, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso e outros. Apostou no funk como o "novo pop" brasileiro, criando selos e levando para a Warner artistas como Anitta e Ludmilla. Hoje, é uma voz bastante atuante sobre a questão da discriminação por idade no mercado. Para ele, “estranho é não estarmos falando muito sobre isso, já que o mundo está envelhecendo”.

"O carimbo de velho é mortal em várias coisas, especialmente na música. E eu vejo isso com muita frequência", diz o executivo hoje por trás do selo Alma Viva.

Affonso encerrou seu ciclo na Warner no fim de 2022, quando foi substituído por Leila Oliveira. Pela idade – o executivo trabalha com música há mais de 40 anos –, muita gente achou que ele estava se aposentando.

“Eu não me sinto velho. Leila Oliveira, que me sucedeu na presidência da Warner, sempre me diz que ‘dou pau’ nos algoritmos das plataformas. Ouço de tudo! Hoje, trabalho muito mais do que quando estava na Warner”, conta.

Para ele, a grande questão é se manter relevante, e isso deve ser valorizado no profissional.

“Às vezes, você chega numa mesa de reuniões só com jovens, que estão com várias bandeiras anti-isso ou antiaquilo na mão, e eles olham pra sua cabeça branca (no meu caso, lisa) e se mostram meio incrédulos. Isso choca, mas eu não amanheci velho hoje. Acho que a única forma de não ficar para trás é buscar aprender todos os dias. O que eu mais gostava de fazer, e ainda gosto, era, enquanto presidente da Warner, ir para a rua e ouvir as opiniões, as músicas novas. ‘A verdade está na rua’ é uma frase antiga, mas superatual. A dica é: nunca pense que você sabe tudo. Não tenha medo do novo.”

Sérgio Affonso. Arquivo pessoal

Ana Lélia, que tem seu próprio selo, a Girassol Studios, em Brasília, já emplacou trilhas em novelas da Recod (“Louca Paixão”) e da Globo (“Malhação”) e vive uma fase de intensa produção, aos 50 anos, acredita no papel de cada profissional mais velho para mudar as coisas no mercado.

“Quando o profissional da música testemunha o crescimento de outros da mesma faixa etária, ou até mais velhos, ele se sente representado e motivado a continuar lutando. Através da Girassol Studios, compomos e produzimos para diversos artistas, entre eles há uma grande parcela de homens e mulheres acima dos 40 anos. Essa é uma escolha pontual para que possamos fazer nossa parte na quebra de barreiras”, conta.

Cris Perez bate na mesma tecla.

“Do lado da indústria, é preciso dar a oportunidade para esse artista. As pesquisas dizem que quem ouve mais música é a faixa etária jovem. O que fazer, então?", indaga, para logo em seguida responder: "Colocar artistas mais velhos em contato com esse público, através da mídia digital, rádios, trilhas sonoras de séries e filmes. Colocar nos festivais. E também focar no público jovem adulto, que costuma ser mais preguiçoso na descoberta de músicas, mas que ainda é uma grande fatia do mercado consumidor musical.”

LEIA MAIS: Envelhecer na música: entre uma carreira longeva e a discriminação pela idade

LEIA MAIS: Em 7 anos, associadas se multiplicam na UBC - mas participações delas nos ganhos, não


 

 



Voltar