UBC conversa com Will Page, ex-Spotify e autor de artigo que mostra como copyright musical ultrapassou o de filmes e séries
Por Eduardo Lemos Martin, de Bath, Inglaterra
Will Page. Foto: Anjelica Bette Fellini
Quem fatura mais com direito autoral, a música ou o cinema? Fosse essa a “pergunta do milhão” dos programas de TV do gênero, é provável que a maioria dos participantes arriscaria responder ‘cinema'. E eles estariam certos… até agora. Pela primeira vez na história, os ganhos oriundos de direitos autorais de obras musicais superou o valor de copyright de produtos audiovisuais como filmes e séries.
A informação foi publicada em novembro, em um artigo do britânico Will Page, ex-economista chefe do Spotify e professor da London School of Economics. A partir de um trabalho de análise de dados fornecidos por entidades como IFPI (Federação Internacional da Indústria Fonográfica) e Cisac (Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores), Page revelou que o valor global dos direitos autorais no ano civil de 2023 atingiu US$ 45,5 bilhões (ou R$ 276,6 bilhões, pelo câmbio de hoje), um crescimento de dois dígitos (11%) ano a ano e um aumento de 26% desde o ano de 2021, marcado pela pandemia.
A análise compara esse valor à "participação do distribuidor", que são as receitas que retornam aos distribuidores de filmes, de US$ 16,6 bilhões (R$ 101 bilhões). Daí a notícia de que a música arrecada mais agora - na verdade, quase o triplo.
“Você teria sido expulso da sala se tivesse sugerido isso antes da pandemia, em 2019. Naquela época, o cinema era um terço maior que a música, mas agora a situação mudou, e a música é 38% maior que o cinema", diz Page, em conversa por email com a UBC. “Tudo isso em um curto espaço de tempo. Isso ajuda a gente a pensar sobre a economia da atenção. Nós estamos passando menos tempo em frente a uma tela e mais tempo em nossos sofás. Por quê? A gente investiu nas nossas casas.”
Segundo a análise de Page, a divisão de direitos autorais de 2023 é formada por US$ 28,5 bilhões (R$ 173,25 bilhões) em receitas registradas; US$ 12,9 bilhões (R$ 78,4 bilhões) em arrecadações de organizações de gestão coletiva (como a UBC); e US$ 4,2 bilhões (R$ 25,5 bilhões) em renda direta de editoras. As gravadoras cresceram na taxa anual mais rápida (12%), seguidas de perto pelas organizações de gestão coletiva (11%) e, por último, pela renda direta das editoras (4%).
“Quando calculei esse número pela primeira vez, nove anos atrás, em 2014, o valor era de apenas US$ 25 bilhões (R$ 152 bilhões, no câmbio de hoje, e não no da época). No ano que vem (quando calcularmos 2024), poderemos ver os direitos autorais dobrando em uma década. Não se engane: é a hora do boom”, afirma, categórico.
Para as gravadoras, aliás, a notícia é duplamente boa: suas receitas vindas do streaming cresceram 10,4%, mas o dinheiro arrecadado com o disco físico não é mais um detalhe na conta final, aumentando em 15,4% em relação ao ano anterior. Somente nos EUA, o vinil arrecadará US$ 1 bilhão (R$ 6,08 bilhões) para as gravadoras até o final de 2024, e esse número só deve crescer nos próximos anos, já que há uma maior variedade de fábricas ao redor do mundo, o que barateia a produção.
Na conversa com a UBC, Page falou ainda sobre o papel da “glocalisation" (a música local que domina as paradas de sucesso de plataformas globais), o poder de fogo do Brasil neste novo cenário cenário e o que pode atrapalhar o ‘boom’ do ganho com direitos autorais na música. Confira as respostas deles a duas das perguntas:
Em seu artigo, você mostra como o sucesso de artistas locais afeta positivamente os números de arrecadação de direitos autorais. A glocalização se tornará ainda mais forte nos próximos anos?
WILL PAGE: Totalmente! Veja, não sabíamos que a palavra glocalização existia em fevereiro do ano passado, agora ela faz parte do léxico da indústria - todo mundo está falando sobre ela. Todo mundo está tentando defini-la em tempo real. Esta é minha opinião quente sobre a história até agora: (i) se você não fala inglês e é europeu, então a glocalização é uma força para o bem, (ii) se você fala inglês e não é americano, então a glocalização é uma força para o mal e (iii) se você é brasileiro, então desça e dance enquanto você se diverte.
Me explico: o Brasil é o primeiro grande mercado a basicamente dizer "adeus" ao domínio da mídia de língua inglesa. Se você for até as paradas de artistas do YouTube, terá sorte de encontrar QUALQUER artista internacional - o Weeknd está classificado em #97. Melhor ainda, deixe Pedro Kurtz explicar neste fantástico vídeo de oito minutos. É uma aula magistral. Ou fale com a superinteligente Cris Falcão na Virgin Records no Brasil, ela explicou no palco do SXSW como está obtendo mais autonomia para desenvolver mais talentos locais e colhendo ainda mais recompensas.
Pedro, Cris, Sandra Jimenez e a equipe incrível do YouTube Brasil, ou o Roni Maltz Bin no Sua Musica - todos eles sabem o que está acontecendo, eles são os professores da ‘glocalisaiton’, enquanto eu sou apenas o aluno. Todos nós precisamos acordar para o Brasil, pois é um microcosmo do que vai acontecer no mundo todo - conforme a mídia se torna global, a cultura se torna local. O mercado de mídia de língua inglesa costumava ter um "passe livre", agora estamos acordando para uma ressaca induzida por caipirinha.
Você prevê que no próximo ano (2024) as receitas de direitos autorais poderão chegar a um valor 100% maior do que há uma década. As condições parecem favoráveis para esse crescimento, mas há algum fator que possa impedir essa projeção?
WILL PAGE: A saturação nos mercados ocidentais é uma coisa agora, os herbívoros do streaming estão se tornando carnívoros. Então podemos ver alguns DSPs relatando crescimento recorde. Mas será que vai ser um crescimento adicional ou vai comer o almoço dos outros? Apertem os cintos, pois vai ficar instável. Também sinto a necessidade de salientar que o crescimento pode ser nominal (ignore a inflação) ou real (fator na inflação) - precisamos fazer o valor da música aumentar com o custo de vida, e isso ainda não está acontecendo. Assinei a Netflix por £ 7,99 libras (cerca de R$ 62), agora eles me cobram £ 16,99 (R$ 131), e estou usando menos porque pago pela Disney+, Apple TV+ e Amazon Prime (mais minha taxa de licença da BBC). Na música, veja, eu gastei £ 11,99 (R$ 92) no meu almoço para viagem hoje. Isso é toda a música do mundo offline, sem anúncios e sob demanda por um mês. E esse é o meu almoço. A música é tão barata que me dá indigestão.
LEIA MAIS: Mais sobre a glocalização num papo de Will Page com a Revista UBC #57
LEIA MAIS: Música vai gerar US$ 1 bilhão no Brasil em 2027, prevê relatório