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Márcio Borges: ‘Para virar meu parceiro tem, antes, que ser meu amigo’
Publicado em 12/02/2025

Com 79 anos recém-completados, compositor mineiro não para de criar; à UBC, fala de parcerias, projetos e de seu novo curso de composição

Por Alessandro Soler

Márcio Borges. Foto: Reprodução/TV Globo

Márcio Borges fez 79 anos no último dia 31 de janeiro. Também fez mais de 250 canções em 60 anos de carreira. Sobretudo, fez muitos fãs e, pelo menos, quatro dezenas de amigos-parceiros. Entre os mais frequentes, o irmão, Lô Borges, e Milton Nascimento, ambos companheiros de “Clube da Esquina”, o álbum de 1972 que foi também um movimento cultural que emanou de Belo Horizonte para mudar a cara da música brasileira para melhor.

Mas ele não se detém demais no que fez. Márcio Borges parece ter mesmo a mente posta no que ainda fará.

“Só com meu irmão Lô, tenho dez canções inéditas, aguardando lançamento. Com o Danilo Mesquita, mais dez, e por aí vai”, descreve, em entrevista à UBC, o compositor, escritor e também professor, que está lançando um curso online, As Palavras Cantadas, em que faz um eclético passeio pela história da composição, fala de sua experiência pessoal na área e ensina técnicas de criação.

Não é, nem de longe, a primeira aventura dele na arte de lecionar. Desde antes da pandemia já ministrava oficinas e cursos pelo país. Em 2023, deu um workshop de um dia no prestigioso Berklee College of Music, nos EUA; ano passado o repetiu na Boston Public Library, também naquele país.

Cercado de amigos, alunos, companheiros de criação, Márcio é, essencialmente, um tipo sociável, amigo dos parceiros. Um sujeito que se mostra grato pelo que pôde aprender com os que cruzaram seu caminho.

“O bom de compor é compor com amigos que nos entendam, que viajem a mesma viagem nossa, que pensam parecido e têm os mesmos ideais e as mesmas coisas a dizer. Parceria pressupõe companheirismo. Comecei a compor com o Bituca (Milton) debaixo da ditadura e da censura, nossos amigos desaparecendo, notícias tenebrosas circulando. Éramos jovens e sonhadores. A dor nos embalava, o medo nos dava fôlego. Compor era um ato de resistência”, relembra. “Tenho muito orgulho do que fiz, mas tenho plena consciência de que devo muito mais do que meros 50% aos meus amigos e parceiros musicais, alguns magistrais, da magnitude de um Ronaldo Bastos, um Fernando Brant."

Se seu território seguro é o imenso guarda-chuva sonoro a que nos acostumamos chamar MPB, também é certo que o artista vem experimentando coisas mais arriscadas. Durante a pandemia, compôs com a maestrina Claudia Cimbleris a suíte sinfônica “A Suíte do Cigano”, executada pela primeira vez em 2023, pela Orquestra Sinfônica do Palácio das Artes, em Belo Horizonte.

“Gostei muito da experiência e, aos poucos, bem devagar, vou colocando algumas novas ideias musicais na pauta, para possíveis novos arranjos sinfônicos. Tudo sem prazo. Nessa levada sem compromisso, estou retomando uma velha parceria com o artista gráfico Kélio Rodrigues, genial autor daquela capa do LP Milton, de 1970, aquela com tipos grafados em cor laranja, sobre uma ilustração a pincel atômico que mostra o Bituca de perfil, de peito nu, cheio de colares coloridos, no estilo do Milton Glaser naquela capa do Bob Dylan. Kélio está criando as ilustrações de um livro de poemas meus (livro tradicional, impresso no papel) ainda sem prazo de finalizar.”

A seguir, os principais trechos da entrevista.

 

Como tem sido o seu processo criativo ultimamente? O que o inspira?

MÁRCIO BORGES: Atualmente eu só componho letras quando sou instigado pelos meus amigos compositores, que a toda hora estão me procurando e me oferecendo canções para eu colocar letra. Nem todas eu tenho encarado. As que o Tavinho Moura me envia, por exemplo, eu encaro todas. São todas lindas e originais. Ano passado fizemos “Mensageiro Beira-Mar” e “Vida de Marinheiro”:

Suplicando nas águas

Um farol no escuro

Certeza no mar

É balançar

E não ambicionar

Prêmio sem valor” ...

Este ano fizemos “Manero Pau”, que já está circulando na internet.

Levantar poeira

Assim que eu der sinal

Na saudação mineira

Dançar o Manero Pau

Eu vim de lá do Ceará

Deixei o Crato e o Sobral

Baixei aqui do Cariri

Vim ensinar o Manero Pau...

Minha inspiração continua sendo o lema que cravei há tantos anos, quando escrevi que “de tudo se faz canção” e que “sonhos não envelhecem.”

Como traduzir tantas décadas de produção profícua e saber criativo num curso? Quem fizer As Palavras Cantadas pode esperar o quê?

A gravação desse curso foi outra produção que realizei dentro do período da pandemia. O isolamento e a impossibilidade de circular livremente me levaram a uma necessidade imensa de ocupar o tempo, de ficar criando coisas, escrevendo peças musicais, escrevendo roteiros para filmes, ensaios, poemas, um mundo de coisas.

Minha filha Isabel, que é cineasta e mora nos Estados Unidos, tinha vindo pro Brasil, pra passar o perrengue da pandemia aqui na roça, conosco, seus pais. Ficou quase dois anos aqui, antes de voltar pra lá. Outro filho meu, o José Roberto, deu-lhe então a ideia de gravar esse curso. Na verdade, As Palavras Cantadas era uma oficina de criação que meu irmão Telo Borges, o poeta Murilo Antunes e eu ministrávamos ao vivo, em várias cidades brasileiras, BH, São Paulo, Ouro Preto, Campina Grande, Salvador e outras. Bebel e José me estimularam a gravar a oficina e já foram logo montando a luz, preparando os equipamentos de gravação. Bebel filmou, nós editamos, e minha filha caçula, a Helena, está dando uma força na venda e na divulgação.

Quem quiser se aprofundar nesse curso pode esperar uma experiência no mínimo curiosa, e certamente enriquecedora, pois não me limito a transmitir técnicas e macetes de compor. Nem fico só na história multissecular das palavras cantadas, que vem desde os tempos primitivos, passando por Homero, pelos vates da antiguidade, pelos modernistas, pelos radicais etc.  Procuro também traduzir um pouco da minha própria experiência pessoal, um pouco das personalidades e características dos meus principais parceiros, relatos, fatos e lendas dessas amizades e parceiras, bem como da literatura e da poesia que nos formaram. Além, obviamente, dos filmes que marcaram nossas vidas como compositores. Então, além das técnicas de compor e das figuras de linguagem, além das rimas e versos, você também vai achar no curso muita informação de cinema, literatura, poesia, história, biografias, revoluções da cultura e curiosidades várias. Um retrato inteiro de Márcio Borges, suas canções, sua época e sua vida, com o máximo de detalhes inéditos.

Com Milton Nascimento e Ronaldo Bastos em foto recente. Arquivo pessoal

De que outras formas você tem transferido toda a experiência que acumulou aos mais jovens? Tem, por exemplo, parceiros de criação entre eles?

Um deles é um jovem parceiro de criação que a fortuna me presenteou, o talentoso ator, compositor e cantor Danilo Mesquita. Claro que, seguindo a minha própria tradição, para virar meu parceiro ele teve, antes, que virar meu amigo. Foi mole pra ele. O cara é maravilhoso como artista e como pessoa. Me levou à casa dele em Salvador, no Cabula, para almoçar com pais, primos e tias, fiquei “amigo de família”. Hoje, estamos com dez canções novinhas em folha, para lançarmos ainda este ano. 

Tenho ainda feito umas canções com o Luiz Simas, que mora em Nova York. Nossa primeira parceria tem coautoria de Roberto Menescal. Com meu amigo Felipe Cerquize compus quatro canções muito lindas, que ele lançou num EP produzido pelo Cláudio Nucci. Outro parceiro novo que estou cultivando com muito prazer é o Luiz Gabriel Lopes, com quem tenho grande afinidade de ideias, por exemplo a cultura amazônica e o amor pelos grupos étnicos. Outro jovem (jovem pra mim, pelo menos) com quem andei compondo legal, mas que agora anda um pouco sumido de mim, é o incrível Thiago Delegado. “Quem Vai Pagar O Que Não Tem Preço” teve milhares de visualizações na época do desastre ecológico do rompimento da barragem de Brumadinho. Depois fizemos a linda “Última Chamada”.

Fiz com o Ian Guedes, filho do Beto, uma primeira canção, ainda inédita, “Incêndios da Ilusão”. Ainda tem o João Antunes, filho do Murilo, esperando na “fila” das canções a compor. E tem o excelente Victor Pozas, com quem compus um tema para a novela “Mania de Você”. A canção se chama “Entre o Bem e o Mal”, e conta com o Dani Lopes nessa parceria cantada pelo talentoso pernambucano Johnny Hooker. Nesses últimos tempos tenho trabalhado de vez em quando com meu sobrinho Rodrigo Borges, que já gravou várias canções de nossa parceria.

Todos esse que citei têm idade para serem meus filhos, mas eles me mantêm ativo.

Também tenho que citar com muita honra a canção que compus com meu gigante gentil, meu irmão de fé e amor, meu Bituquinha. Trata-se de “Um Vento Passou”, que compusemos em 2022, e que o Paul Simon gravou ano passado, cantando minha letra em português, em dueto com Bituca. Para que essa lendária parceria voltasse a acontecer, tenho que citar a intervenção providencial da Esperanza Spalding, que gravou a demo, me enviou, facilitou os caminhos e virou minha amiga depois dessa. Comigo ela só fala em português.

Nesta entrevista do ano passado pra gente, seu irmão Lô diz que você é mesmo o maior parceiro dele. Tirando o Lô e o Milton, com quem gostaria de compor ou ter composto? Dito de outra maneira: se pudesse escolher um parceiro, vivo ou morto, que nome lhe viria à mente?

Eu já quis compor, num mundo ideal, com ninguém menos do que Miles Davis, mas abandonei o sonho depois que descobri que ele era egoísta, marrento e grosseiro com seus músicos. O contrário do amigo, minha condição sine qua non (para compor em parceria). Além disso, ele tinha ciúme do Bituca. Já sonhei em compor com (John) Coltrane, (Tom) Jobim, Caetano (Veloso), (Gilberto) Gil, Morais Moreira, Arrigo Barnabé, Carlos Lyra, Luis Bonfá, Vinicius de Moraes, Jorge Ben Jor, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga (pai e filho), Os Mutantes, todos aqueles que eu considerava geniais e de quem era muito fã.

Alguns desses viraram meus amigos, nenhum virou parceiro. Além desses devaneios, a vida me proporcionou coisas muito lindas nessa matéria, como ser parceiro de verdade de ídolos inalcançáveis, como Cat Stevens e Roberto Menescal, ouvir artistas como Paul Simon, Stanley Turrentine, Larry Coriel e Elis Regina interpretarem canções que escrevi.

Grandes movimentos culturais, como o construído por você, o Milton, o Lô Borges, o Beto Guedes e tantos outros que formaram parte do Clube da Esquina, já não são tão comuns. Hoje, a mirada está muito focada no mainstream, em gêneros como sertanejo, funk, pisadinha ou arrocha. Fazem falta as vanguardas? Ainda são necessárias?

Eu sinto tanta ojeriza disso, desses horrores do mainstream, me sinto tão deslocado no tempo e no espaço, acho tudo tão feio, me sinto tão aviltado como ser inteligente, como raça humana, me sinto tão afastado dessa civilização cruel que nivelou tudo pelo nível médio de estupidez, pelos algoritmos que beneficiam sistematicamente a burrice, a violência, o fascismo e a barbárie, que me refugio na minha roça, me isolo no meu casulo de proposital alienação e proteção contra essas coisas letais. Antecipando essa decadência em pelo menos 40 anos, eu escrevi este poema abaixo, acho que em 1984.

Tensas cordas cortam

A suave redondeza dos morros

Telégrafos riscam palavras

Entre bananeiras.

 

Na velha casa

O velho pensa

Por quê fiquei tão

(de) (con) formado?

 

Alheio das guerras

E seus intervalos

Talvez aprenda a ler segredos

Na calma musculatura

Dos cavalos.

Hoje vivo isso textualmente. Na retaguarda, escutando a mãe natureza.

Mas, as vanguardas sempre haverão de existir, aqueles seres adiante de seu tempo, que desenvolveram e desenvolverão sua capacidade de pensar com clareza, seres originais e inteligentes, capazes de inventar novos caminhos, de ousar desafiar os cânones e os mainstreams da vida. Há que ter uma motivação muito mais valiosa do que o sucesso pessoal, do que fama e dinheiro. Mas ainda haverá desses heróis, sempre ainda haverá.

Por outro lado, esses mesmos gêneros que dominam o panorama musical brasileiro têm como marca as canções escritas por vários parceiros, algo que sempre foi, aparentemente, uma preferência sua...

Acho que o mainstream aceita qualquer coisa, até as verdadeiramente revolucionárias, desde que se submetam às regras asfixiantes dos Spotifys e afins. Cantautores, grupos populosos, bandas gigantescas, trios, duplas, conjuntos de anões, galãs bregas e tonitruantes, seja o que for. No mainstream tudo é puro Lavoisier – nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Quase sempre em merda. The shit must go on (A merda deve continuar).

O Chico Buarque está mais dedicado à literatura que à música ultimamente. Você é um cara com bastante experiência no mercado editorial. Sente que também poderia deixar a música um pouco de lado pra abraçar mais os livros e aulas?

Pra falar francamente, eu me dedico mesmo é a admirar cada vez mais o Bituca, aposentado, sem planos, tranquilo vendo sua novela, passeando pelo mundo com o filho amado, sem agenda definida, pronto para curtir as aventuras da vida, quaisquer que sejam e venham de onde e como vierem. Tranquilidade, é isso que eu quero. Mas eu mesmo não consigo parar com nada. Literatura sempre foi uma necessidade minha, continuo sendo um leitor assíduo, e tenho um romance pronto há dez anos, “Oito Canoas Para o Céu”, carecendo até hoje de uma revisão que provavelmente nunca virá. Só de pensar em revisá-lo já me dá a maior preguiça, imagine então escrever um romance novo.

Já publiquei seis livros na vida. “Os Sonhos não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina”, a novela juvenil “Os Sete Falcões”, a tradução autorizada do livro “Blackbird Singing”, de Paul McCartney, a coletânea histórica “Cartas da Humanidade”, depois a histórica “Clube de Esquina – 40 anos” e finalmente, uma década depois, a edição bilingue “De Tudo se Faz Canção – 50 anos do Clube da Esquina”, este último em parceria com a querida editora e pesquisadora Chris Fuscaldo. Está quase bom, ainda pretendo publicar mais um ou dois livros.

Com tantas realizações ao longo desta trajetória sólida e os 79 anos recém-completados, ainda falta algo a alcançar?

Primeiro, falta alcançar 100 anos de idade e lançar o livro “Clube da Esquina – 80 anos”. Depois, alcançar o Nirvana. Porque os Beatles eu já alcancei.

 

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