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Há 65 anos, Brasil tentou taxar os músicos estrangeiros para financiar os locais
Publicado em 19/05/2025

Conheça artigo esquecido da lei que criou a OMB e as semelhanças e diferenças com taxações que vários países vêm impondo ao streaming

Por Alessandro Soler, de São Paulo

A lei que criou a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) completa 65 anos em 2025. Mas um artigo esquecido (e, em tese, ainda vigente) dela traz um princípio bem atual: taxar estrangeiros para, com o dinheiro, financiar os locais.

A ideia, hoje em dia, está na raiz de uma série de leis e normativas que vêm se multiplicando em países como Espanha, França, Canadá, Coreia do Sul e Austrália, obrigando empresas como Spotify, Netflix, Amazon e YouTube a contribuírem financeiramente com a produção cultural local. Isto se dá por meio da imposição de taxas que começam em 1,2% sobre as receitas locais das plataformas, no caso da França; passam por 5%, no caso da Espanha e do Canadá; e chegarão a 10% a partir do mês que vem, no caso da Austrália. O Brasil também começa a debater uma taxação assim.

Embora com contexto histórico, inspiração e modus operandi profundamente diferentes, o artigo 53 da Lei nº 3.857/60, a que criou a OMB, previa algo “similar”:

Os contratos celebrados com os músicos estrangeiros somente serão registrados no órgão competente do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, depois de provada a realização do pagamento pelo contratante da taxa de 10% (dez por cento) sobre o valor do contrato e o recolhimento da mesma ao Banco do Brasil em nome da Ordem dos Músicos do Brasil e do sindicato local, em partes iguais”, diz o texto da lei.

Não fica totalmente claro o que seria feito do dinheiro, subentendendo-se que sindicatos e Ordem o usariam para financiar músicos e projetos musicais locais.

REGRA NÃO FOI SISTEMATIZADA

Segundo apurou a UBC, a 3.857/60 continua inteiramente em vigor, incluindo seu artigo 53. Contudo, o dispositivo nunca foi devidamente regulamentado. Nenhum sistema foi criado para operacionalizar o recolhimento do valor, e o Ministério do Trabalho nunca exerceu fiscalização consistente sobre essa exigência. Aos poucos, o artigo foi sendo ignorado — até mesmo pelo setor artístico.

“Não há dúvida de que a lei dos anos 60 e as leis de agora partem da mesma lógica: projetos estrangeiros que obtêm receitas no Brasil devem contribuir com a produção local de alguma maneira. Mas terminam aí as semelhanças”, afirma Claudio Lins de Vasconcelos, advogado especialista em direito autoral e nas indústrias culturais e criativas e sócio sênior do escritório Lins de Vasconcelos, Carboni e Tamanaha Advogados. “O ‘estranho’ dessa lei é o dinheiro ir parar diretamente nas mãos de entidades privadas, como a OMB e sindicatos. As leis atuais preveem a gestão dos recursos por entidades públicas e estabelecem sistemas estruturados de financiamento de projetos locais com o dinheiro.”

Não é, nem de longe, a única diferença.

“A lei da OMB é trabalhista, regulamenta a profissão de músico. É protecionista, e ainda carregada do trabalhismo getulista. Ela visava a dar garantias a um profissional (o músico) que não tem regime de emprego, não é celetista, é sempre um autônomo, um operário que trabalha todos os dias. Isso tem a ver com a contratação da mão de obra”, esclarece Marisa Gandelman, advogada, educadora, ex-diretora-executiva da UBC e criadora de cursos sobre a história do direito autoral no mundo. “Não tem nada a ver com política de Estado nem com proteção da produção local, algo que leis de cota de tela, por exemplo, já fazem há anos.”

Lins de Vasconcelos faz coro com ela: o Brasil já dispõe de leis que taxam (com a Condecine, por exemplo) produções audiovisuais estrangeiras e, através do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), financiam a produção local. Algo desejado pelo mercado musical há anos, e que poderia virar realidade ainda este ano, como contamos na Revista UBC 59, com a criação de uma Agência Nacional de Música e um fundo setorial para esse mecado.

“Não há problema nenhum em países subsidiando sua produção cultural. As cotas de tela são uma realidade em diversas nações. Tem sentido taxar os grandes produtores e distribuidores, que se beneficiam de uma lógica de mercado que os favorece, e permitir que só os independentes possam acessar o FSA. Quando uma empresa estrangeira vai remitir royalties para o exterior, tem que pagar a Condecine. Mas, se vai produzir aqui, abate a taxa. Você, com políticas assim, cria mecanismos fiscais e extrafiscais para fomentar a produção e distribuição de obras audiovisuais”, defende o advogado, que lembra que outra lei antiga brasileira foi muito mais efetiva para o financiamento de projetos locais do que a 3.857/60.

LEI DO DISCO

Ele se refere à chamada “Lei Disco é Cultura”, ou “Lei do Disco", nomes populares para o artigo 2º da Lei Complementar nº 4, publicada em 2 de dezembro de 1969, em pleno período mais duro da ditadura militar. A normativa tinha uma lógica inversa à da taxação: ela permitia que as empresas deduzissem de seus impostos os gastos com a produção de discos nacionais, o que, em essência, era um incentivo fiscal para a indústria fonográfica. Como, na época, as grandes discográficas multinacionais já dominavam o panorama musical brasileiro, na prática tinha-se um cenário em que essas empresas passavam a investir mais na produção local.

“Foi ela que permitiu o boom da MPB nos anos 1970. Provavelmente, maravilhas como ‘Acabou Chorare’ (Novos Baianos), Clube da Esquina, ‘Transa’ (Caetano Veloso) e muitas obras obras-primas não teriam surgido sem essa lei”, cogita Lins de Vasconcelos, lembrando sua extinção em 1990.

Marisa Gandelman lembra que, internacionalmente, ventos políticos e econômicos nas últimas décadas poderiam ter ameaçado a ideia de usar o dinheiro do mainstream cultural para fomentar a produção independente. Mas a própria disseminação das novas leis recentes, que taxam o streaming em vários países, mostra que a lógica resiste:

"Ainda que o estado de bem-estar europeu tenha sido comido pelo neoliberalismo de (Margaret) Thatcher (primeira-ministra britânica por toda a década de 1980) e Ronald Reagan (presidente dos Estados Unidos no mesmo período), as regras de reciprocidade, o multilateralismo, a globalização, as políticas de incentivo à cultura através de cotas ou taxação, com obrigação de investir na cultura local, permanecem… Ainda.”

 

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