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João Carlos Martins sobre sua despedida internacional: ‘No futuro, ninguém sabe’
Publicado em 03/06/2025

Poucos dias depois do último concerto no exterior, maestro fala à UBC sobre seus planos: aos 85, ele aposta na carreira de educador

Por Eduardo Fradkin, do Rio

Fotos de Cláudio Alves/Speed Comunica

O maestro ao final do seu concerto de despedida dos palcos internacionais, no último dia 9, no Carnegie Hall, em NY

Mais de 60 anos após a sua estreia no Carnegie Hall, o pianista e regente paulistano João Carlos Martins voltou a essa prestigiosa sala de espetáculos nova-iorquina para o seu concerto de despedida do público americano, no último dia 9 de maio. Foi também o ponto final da última turnê internacional da sua carreira. No Brasil, entretanto, ele continua ativo nos palcos. Sua próxima apresentação será no dia 18 de junho, no Teatro Santander (SP), com a Orquestra Bachiana Filarmônica SESI-SP. "Eu não consigo viver sem o público", disse o músico à Revista UBC, em uma conversa telefônica de mais de meia hora, na qual ele contou histórias divertidas de sua carreira e seus planos para o futuro.

 

UBC: Por que tomou a decisão de se despedir dos palcos internacionais?

JOÃO CARLOS MARTINS: No dia 25 de junho (deste ano), eu faço 85 anos. Mesmo assim, continuo com uma agenda louca realizando concertos. Só nesta semana, foram três concertos aqui no Brasil. Mas, internacionalmente, eu, depois de quase 30 anos, dormi cerca de 40 noites por ano em aviões. A viagem internacional me cansa um pouco, entende? Como seria minha trigésima apresentação em Nova York, eu quis que fosse novamente no Carnegie Hall. A maioria das vezes que toquei naquela cidade foi no Carnegie Hall e no Lincoln Center. Eu quis testar como estava meu Ibope, e, três semanas antes, o concerto já estava com lotação esgotada. O grande pianista Arthur Moreira Lima dizia que há duas formas de ver se a música clássica está bem: quando tem pipoqueiros na porta do teatro e quando, três dias antes do concerto, tem cambistas vendendo ingressos. E, realmente, nesse concerto, havia cambistas vendendo ingressos a preços absurdos. Talvez tenha sido o melhor concerto da minha vida... 65% do público eram americanos, e 35% eram brasileiros. Foi uma emoção quando eu entrei no palco, e as três mil pessoas se levantaram.

O senhor não tem vontade de fazer um concerto de despedida na Europa também?

Nos anos 1960 e 70, eu toquei em todos os países da Europa. Mas a minha carreira foi mais direcionada aos Estados Unidos, ou melhor, à América do Norte, à América Central e à América do Sul. Toquei em todos os países europeus que você possa imaginar, mas meu foco maior foi nos Estados Unidos, já que eu morava em Nova York. Fiz 70% das minhas gravações em Los Angeles, e 30%, no Leste Europeu, na Bulgária. Então, fiz a minha despedida internacional nos Estados Unidos, embora deva dizer que eu tive um grande amigo que também se despediu e, depois, mudou de ideia. O nome dele era Edson Arantes do Nascimento. Então, no futuro, ninguém sabe....

No Brasil, o senhor pretende continuar com uma agenda intensa de concertos ou pretende diminuir o ritmo?

Eu vou me dedicar muito à educação musical para crianças, principalmente as vulneráveis. Isso já começou, neste ano, no Liceu Pasteur (em São Paulo). Agora, eu quero, através das secretarias de Educação, implantar uma metodologia, criada pela minha equipe e por este velho maestro, que vai tentar realizar definitivamente o sonho de (Heitor) Villa-Lobos: desenhar o Brasil, em sua forma de coração, através da música. Já fiz uma exposição dessa metodologia no Senado Federal. Creio que isso será meu maior legado. Tive uma carreira de pianista, que começou aos 8 anos, a de maestro, que começou aos 63 anos, e, aos 85, pretendo começar minha carreira de educador musical.

A metodologia de Villa-Lobos era baseada no canto orfeônico, ensinado nas escolas. Como é a sua?

Em 1934, Villa-Lobos conseguiu que o canto orfeônico fosse introduzido nas escolas brasileiras. Depois, no regime militar, o canto orfeônico saiu do currículo escolar. Em 2008, voltou, mas, por falta de professores especializados, a música se tornou um dos componentes do ensino de artes. Assim, a música passou de carro-chefe a primo pobre. Além disso, o grau de concentração de uma criança, nos anos 1940, podia chegar a uns 50 minutos. Hoje, não passa de 15 minutos para receber as primeiras noções de música. Com base nesses 15 minutos, eu e minha equipe desenvolvemos uma metodologia. Como ela funciona? Não se trata de enfiar a música goela abaixo em uma criança, mas, sim, através de uma brincadeira, a criança procurar a música. Por exemplo, para crianças de 5 ou 6 anos, basta a escola ter folhas de papel sulfite, copinhos plásticos e varetas. E os milhares de professores que atualmente não existem no Brasil para dar aulas de música serão substituídos por um professor num telão, que mostrará, durante aqueles 15 minutos, a metodologia. O professor de artes, que estará presente, vai monitorar a turma. Eu creio que essa será a grande realização da minha vida.

Outro momento do concerto de despedida

Em seus concertos recentes, o senhor tem incluído música usada no cinema. O senhor é cinéfilo? Quais são seus cinco filmes favoritos?

As pessoas conhecem um BBB que é o Big Brother Brasil. Eu digo que, nos meus concertos, o BBB é Bach, Beethoven e Brahms. Quando vai chegando ao final, eu gosto de incluir um compositor de trilhas sonoras. Mas é sempre um compositor que teve formação clássica. Eu sou da velha guarda e adoro “…E o Vento Levou", "A Volta ao Mundo em 80 Dias", "A Lista de Schindler" e, recentemente, adorei "Ainda Estou Aqui". Um filme que também me marcou muito foi "Um Homem, Uma Mulher". Ah, tem outro que eu gosto ainda mais do que esse. É "Cine Paradiso".

O senhor falou do último concerto no Carnegie Hall. E o primeiro? Lembra como foi? Estava nervoso?

Eu fico nervoso para tocar no Brasil. Para tocar nos Estados Unidos, não. Quando eu tinha 20 anos, a Eleanor Roosevelt, esposa do presidente, assistiu a um concerto meu em Washington. No camarim, ela falou para mim que realizaria a minha estreia no Carnegie Hall. Realmente, no ano seguinte, em março, eu, com 21 anos, fiz a minha estreia no Carnegie Hall. Ali, minha carreira deslanchou. Esse concerto, com a National Symphony Orchestra, teve um momento importante. Minutos antes de entrar no palco, o maestro Howard Mitchell falou para mim: “garoto, você não sabe muita coisa de música”. Foi devastador. Então, ele continuou: “mas quero te contar um segredo. Eu também não sei muita coisa de música”. Apontou para a orquestra e disse: “eles também não sabem muita coisa de música”. Aí, abriu uma janelinha em que dava para ver o Carnegie Hall abarrotado de gente, e falou: “e eles sabem muito menos do que nós”. Então, eu entrei com uma confiança incrível no palco.

O senhor disse que fica mais nervoso quando toca no Brasil do que no exterior. O senhor concorda com a afirmação de Tom Jobim de que "No Brasil, sucesso é ofensa pessoal"?

O Tom era muito amigo meu. Às vezes, a gente passeava em Nova York ou conversava no apartamento dele. Um dia, ele falou uma frase assim: “o brasileiro é o povo mais parecido com o americano. O americano acorda, de manhã, e começa a criticar o sistema de saúde, o sistema de transporte, o sistema tributário e o sistema educacional. O brasileiro acorda e começa a meter o pau nos Estados Unidos”. O Tom tinha razão. Eu torci enlouquecidamente por "Ainda Estou Aqui", mas vi pessoas criticando o filme, que teve uma repercussão incrível para o nosso país. Com todos os problemas americanos, o Oscar ainda é o Oscar. Aliás, teve uma cena engraçada comigo... o maior apresentador do Oscar foi um ator e comediante americano chamado Bob Hope. Uma vez, fui fazer um programa na NBC, quando tinha 24 ou 25 anos, e o Bob Hope cruzou comigo em um corredor. Meu empresário falou para ele que eu era um jovem pianista que tinha a maior parte da obra de Bach na memória. Aí, o Bob Hope botou a mão no meu ombro e falou “você sabe como uma pessoa percebe que está ficando velha? A primeira coisa é a falta de memória. A segunda, eu não me lembro.”

Aproveitando essa deixa, como está a sua saúde? Recentemente, o senhor declarou que estava tratando um câncer de próstata. Como está agora?

Zero bala. Foi a minha trigésima primeira operação. A maioria, claro, tinha sido nas mãos (devido à distonia focal, uma doença neurológica que se manifestou nos músculos das mãos do maestro quando ele tinha 18 anos). O importante é que eu fiz, agora, um exame PSA (sigla para Antígeno Prostático Específico) e tinha que dar abaixo de 0,98, e o resultado foi 0,03. Então, eu posso garantir que é mais fácil eu, daqui a alguns anos, morrer em cima de um pódio do que de câncer.

Então, o senhor pretende manter uma carreira de concertista até o fim da vida?

Eu não consigo viver sem o público.

O senhor ficou conhecido pelas interpretações de Bach. Quais são os seus intérpretes favoritos de Bach? Que gravações indica?

O maior intérprete de Bach foi um canadense chamado Glenn Gould. Aliás, quando ele morreu, em 1982, quem fez o concerto de inauguração do Glenn Gould Memorial, em Toronto, fui eu, a convite dos pais dele. Ainda tenho a carta dos pais dizendo que ele era um grande admirador meu. Ele foi o maior intérprete de Bach. As minhas gravações sempre foram comparadas com as dele. Se você analisar o top 5, no mundo, de intérpretes de Bach, eu acho, sem humildade nenhuma, que estou nesse top 5. Eu presidi duas vezes a Bach International Competition, que é a principal competição de Bach, de quatro em quatro anos, em Leipzig (Alemanha), e eu digo que a melhor forma de tocar Bach é fazer uma viagem ao século XVIII, para conhecer o contexto em que ele viveu, e convidar Bach para visitar o século XXI. Se ele estivesse vivo hoje, talvez fosse o maior compositor de jazz que nós conhecemos.

João Carlos Martins toca piano nos bastidores da turnê de despedida

Glenn Gould é um daqueles casos de amor ou ódio, não é? Tem fãs ardorosos e tem seus detratores. Era um músico polêmico, excêntrico.

Uma noite, falamos por telefone durante quatro horas. Falamos um bom tempo sobre Bach, e no resto do tempo, conversamos sobre bolsa de valores. Ele era um especialista no assunto, e, nos anos 1960, eu tive muita sorte na bolsa de valores de Nova York. Foi uma conversa fantástica. Logo depois, ele faleceu. Havia um respeito mútuo muito grande. Eu considero o Gould talvez o maior gênio da arte interpretativa do século XX.

O senhor procura conhecer novos intérpretes e a música que está sendo feita hoje?

Eu sou da velha guarda, e a arte interpretativa de antigamente misturava a individualidade do intérprete com a personalidade do compositor. Com raras exceções, hoje, você vê uma arte interpretativa muito parecida. Eu não acompanho novas gravações. O Arthur Moreira Lima, quando estava no júri do último Concurso Chopin, em Varsóvia, me telefonou e disse: “tecnicamente, vi pianistas tocando espetacularmente”. Eu perguntei: “e musicalmente?”. E ele: “ainda não vi ninguém fazendo música”. Existem exceções, mas o nível médio de hoje não é o mesmo nível médio de antigamente.

O Concurso Chopin já teve jurados que, justamente, torceram o nariz para personalidades musicais fortes. Houve o caso célebre da pianista Martha Argerich, que abandonou o júri (na edição de 1980), porque seus pares não queriam premiar o participante Ivo Pogorelich, cujas interpretações eram radicalmente pessoais. Será que os próprios concursos não colocam a técnica acima da individualidade?

Há sempre pessoas de nariz empinado. Mas o grande segredo da interpretação é ter coragem. A maior experiência que eu tive na vida foi quando tinha 16 anos e meu professor me chamou para tocar um concerto do Villa-Lobos para o próprio Villa-Lobos, que tinha ido almoçar na casa dele. Numa passagem em que estava escrito 'forte', eu comecei em pianissimo e fui crescendo até chegar ao forte. Meu professor me deu uma bronca: "o que é isso? Você está tocando para o compositor!”. Villa-Lobos mandou que eu continuasse. Quando acabei, ele faliu: “garoto, você é muito atrevido! Mas ficou mais bonito assim”. Aquele dia foi um turning point na minha vida. O grande segredo na interpretação é respeitar a tradição unida à inovação.

 

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