Músicas seriam lançadas sem autorização dos autores nem pagamento; à UBC, compositores dizem que ilegalidade ocorre também em outros gêneros
Por Ricardo Silva, de São Paulo
Colaboração de Alessandro Soler, de Madri
Há uma semana a bomba foi lançada. Por meio de uma publicação na ferramenta Stories do Instagram, o compositor Matheus Aleixo, da dupla goiana Matheus e Kauan, denunciou o uso de criações suas, sem autorização, por artistas de um gênero bem específico: o arrocha. No dia seguinte, o incêndio aumentou: vários compositores do sertanejo publicaram em seus perfis um mesmo comunicado, intitulado “Nota de repúdio - Compositores unidos pelo respeito à autoria”, em que chancelam a queixa de Matheus e acusam “sobretudo o segmento arrocha” de apropriação indevida de músicas alheias, algo que dizem ter se tornado uma rotina (leia o manifesto na íntegra no final deste texto).
Passados estes dias, a explosão continua a reverberar, com compositores que atuam em ambos os segmentos se posicionando e escalando a polêmica: para alguns deles, as regravações de músicas sem autorização ou pagamento — e, às vezes, até mesmo com a mudança dos créditos, configurando roubo de autoria — não se restringe ao arrocha. No próprio sertanejo aconteceriam coisas similares.
“Chegamos a um momento em que a situação está sufocante. Artistas de diversas regiões, mas principalmente do arrocha, ultrapassaram todo e qualquer limite de desrespeito com os autores”, diz à UBC Lukinhas, autor de inúmeros sucessos de vários gêneros, entre eles o axé, além de ter participado da criação do megahit “Zona de Perigo”, top 1 do streaming em 2023 na voz de Leo Santana e, segundo ele, “regravado sem autorização por mais de 600 artistas”. “Eles gravam da forma que querem, sobem para as plataformas, trabalham as músicas, vendem seus shows com sucessos que não são deles. Ou seja, um desrespeito descomunal com os compositores.”
A dupla Matheus e Kauan. Divulgação
Baiano e com composições para diferentes cenas, entre elas a do arrocha, Lukinhas diz não generalizar. De fato, sabe-se que muitos artistas do arrocha fazem o processo corretamente, solicitando as autorizações de regravação e pagando as respectivas taxas.
“Não estou generalizando, mas está insustentável suportar cantores se apropriarem das obras alheias. Acontece também no forró, no funk. Aliás, acontece em absolutamente todos os gêneros do país. A polêmica veio à tona agora pela situação realmente insustentável do arrocha”, afirma o criador. “Nenhum autor está reclamando de suas obras ganharem versões em gêneros musicais diferentes, afinal isso é legal. Basta entrar em contato com os autores e solicitar a liberação. E, se a obra estiver com exclusividade vendida, a liberação só poderá ser feita após o vencimento do contrato vigente.”
CASO LEVADO À JUSTIÇA
Lukinhas se unirá a uma ação judicial coletiva de diversos compositores que já está sendo desenhada. Ela terá como foco não somente os cantores, empresário e selos que vêm fazendo uso das músicas sem autorização, mas também os agregadores digitais e plataformas de streaming que publicam os conteúdos ilegalmente e ainda permitem sua monetização.
O compositor Lukinhas. Arquivo pessoal
Outro a afirmar à UBC que também se juntará ao processo é o goiano Celi Júnior. Cocriador de sucessos para, entre muitos outros, Cristiano Araújo (“Perdeu o Cara Errado”, com mais de 60 milhões de reproduções em plataformas como YouTube e Spotify) e Matheus e Kauan (“A Mala”), ele diz que esta última música teve diversas regravações, inclusive no arrocha, feitas de maneira legal.
“Mas muitas foram sem autorização. Outra minha, “Noite Fracassada”, que a dupla Jads e Jadson lançou originalmente, teve regravação recente de um artista muito grande do arrocha sem autorização. Nenhuma necessidade de fazer as coisas desse jeito. O problema ficou generalizado mesmo”, afirma Júnior. “Falta punição. O desrespeito ao direito autoral deveria ser tratado como roubo, como apropriação indébita, deveria dar cadeia e multas pesadas. O nosso é um dinheiro suado, que alimenta famílias, não pode simplesmente ir parar nas mãos de gente que rouba nossas obras. Mas quem faz as leis muitas vezes é usuário de música, tem hotel, tem rádio e não paga ao Ecad. Claro que não tem interesse em fazer leis mais duras.”
O goiano afirma que o modus operandi da apropriação é sempre o mesmo: primeiro, um intérprete grava a canção e a sobe ao streaming, num processo em que a comprovação de autoria supostamente feita por agregadores digitais e plataformas falha. Se a música não estoura, ou o caso não chega aos ouvidos do verdadeiro autor, a música continua ali indefinidamente rendendo royalties às pessoas que se apropriaram dela. Se viraliza, aí então esse intérprete vai atrás da regularização:
“Para eles é muito fácil fazer isso, na verdade. Só precisam agir corretamente se são pegos”, raciocina Celi Júnior. “Tem sertanejo que faz isso também, mas aí é mais com músicas antigas, que o pessoal às vezes já não se lembra. Recuperam a obra, dão uma nova roupagem a ela, sem autorização, e lançam. A escala do roubo que vem sendo feito no arrocha é sem igual, mas realmente todos os gêneros têm problemas.”
GUIAS ROUBADAS
De fato, como a UBC denunciou ano passado nesta reportagem da edição de julho da Revista, um tipo de ilegalidade que vinha ocorrendo com frequência no sertanejo era a publicação de guias, as gravações “de trabalho” feitas por compositores para vender suas músicas aos intérpretes. Muitas dessas guias, enviadas pelos autores a empresário, cantores, músicos e outros participantes do mercado, estavam sendo desviadas e subidas em plataformas digitais. Em outros casos, intérpretes anônimos as regravavam e publicavam em perfis falsos no streaming, utilizando bots (robôs) para impulsionar falsamente as audições.
Em dezembro do ano passado, a Operação Desafino, do Ministério Público de Goiás, prendeu em Passo Fundo (RS) um homem suspeito de liderar uma quadrilha que, entre outras fraudes, roubava guias dos sertanejos e as subiam às plataformas. A identidade do acusado não foi divulgada, mas sim o valor que ele teria ganhado às custas das fraudes: R$ 2,3 milhões.
“Deu uma boa diminuída nesse problema desde a prisão desse cara. Mas a verdade é que a tática dele de usar bots (para inflar as execuções da música) é muito comum entre os artistas, inclusive grandes, no sertanejo. Eu prezo pela coerência. O pessoal criticou esse cara porque ele roubou as guias em benefício próprio, mas não acho que os artistas que se dizem honestos deveriam pagar plays falsas para subir no top 50. Isso também precisa ser denunciado”, pondera Júnior.
O compositor Celi Júnior. Arquivo pessoal
Em declarações à UBC, outro compositor e intérprete que pediu anonimato corrobora o que ele diz: a apropriação indébita de músicas e práticas ilegais para ganhar dinheiro no streaming também ocorrem no sertanejo:
“Todo mundo faz. Não acho legal ficarem apontando o dedo só para o arrocha, como se a culpa fosse dos nordestinos. O problema é geral.”
O papel dos agregadores e das plataformas para conter essa enorme fraude, que tira milhões dos verdadeiros donos das obras, é citado por todos.
“A música é uma arte, e essa arte tem um registro, um número de identidade”, diz Lukinhas.
Celi Júnior reforça:
“O YouTube tem uma ferramenta boa (o ContentID), que derruba rapidamente a gravação quando tem denúncia de fraude. As plataformas de streaming de áudio e as agregadoras também precisam desenvolver algo parecido. E precisam exigir a documentação, checar a documentação. Claramente não estão fazendo isso direito.”
O QUE DIZEM AS PLATAFORMAS
Em declarações à UBC para uma reportagem sobre o problema dos fake streams — o uso de bots para inflar artificialmente as reproduções de uma música —, diferentes plataformas abordaram o espectro mais amplo das fraudes, que inclui também o roubo de canções e guias.
“Sabemos que os agentes mal-intencionados estão sempre evoluindo, por isso nosso time dedicado à prevenção de fraudes está constantemente trabalhando para identificar novas tendências e métodos usados para burlar o sistema. Esse time tem anos de experiência estudando o comportamento de consumo”, sustentou o Spotify.
A Deezer também disse investir constantemente em tecnologia para detectar as fraudes:
“O principal problema é o conteúdo usado apenas para gerar streams falsos. Pode ser ruído branco, música simples criada a baixo custo, música roubada ou conteúdo gerado por IA, mas o objetivo é sempre o mesmo: abocanhar uma parte do fundo de royalties. A Deezer conta com uma equipe dedicada a esses temas, desenvolvendo algoritmos de aprendizado de máquina para detectar comportamentos fraudulentos. Trabalhamos nesses algoritmos desde 2013, e eles estão em constante evolução. Também colaboramos com os distribuidores de conteúdo (agregadores), compartilhando dados e ajudando-os a identificar maus atores do lado deles.”
Já o YouTube Music afirmou fazer varreduras através de suas ferramentas próprias e ainda disponibilizar uma via rápida para denúncias:
“Se você encontrar conteúdo que viola esta política, faça uma denúncia. Acesse este link para ver instruções sobre como denunciar violações às diretrizes da comunidade.Se você quiser denunciar mais de um vídeo ou comentário, é possível denunciar o canal."
LEIA MAIS: Na íntegra, o manifesto dos compositores sertanejos
NOTA DE REPÚDIO – COMPOSITORES UNIDOS PELO RESPEITO À AUTORIA
Nós, compositores e autores brasileiros, viemos a público manifestar nosso total repúdio à prática crescente e inaceitável de regravações não autorizadas de obras musicais, sobretudo no segmento do arrocha, onde a apropriação indevida de músicas alheias tem se tornado uma rotina silenciosa — e extremamente prejudicial.
Na última semana, o compositor Matheus Aleixo, da dupla Matheus & Kauan, expôs por meio de seus stories no Instagram um novo episódio alarmante: artistas regravaram a canção “Nossa Praia” sem qualquer autorização prévia. Trata-se de mais um caso que escancara o desrespeito sistemático ao direito autoral, à ética artística e ao esforço criativo de quem constrói as bases da música brasileira com talento, suor e verdade.
Essa situação não é isolada. Diversos compositores enfrentam a mesma realidade há anos, tendo suas canções regravadas, modificadas ou usadas para capitalização digital e comercial sem nenhum tipo de consulta, crédito ou remuneração. A recorrência desse tipo de violação, especialmente em vertentes populares, demonstra não apenas negligência, mas uma tentativa clara de enfraquecer a força do autor em um mercado que depende diretamente de sua criatividade.
Reforçamos que o direito autoral é protegido por lei e representa a alma da música. Quem regrava sem pedir autorização está cometendo um crime, além de um ato ilegal, antiético e desmoralizante para a classe criativa. A desculpa de que “é homenagem” ou “o público gostou” não isenta a obrigação legal e moral de reconhecer o autor da obra.
Estamos vigilantes. Estamos unidos.
E exigimos:
• Respeito irrestrito à autoria;
• Que plataformas digitais e produtoras não monetizem faixas não autorizadas;
• Que artistas, selos e empresários sejam responsabilizados quando infringirem o direito autoral.
A música brasileira não pode continuar sendo palco de usurpação impune. Estamos falando de sonhos, de sustento, de arte e de história. E isso não se copia, não se apaga e não se toma à força.
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