Prefeituras de diferentes regiões obrigam participantes de festivais a abrir mão da gestão coletiva e, às vezes, do próprio direito autoral
Por Nathália Pandeló, do Rio
Editais públicos de eventos musicais são, por definição, ferramentas de fomento à cultura. Mas o que acontece quando essas ferramentas passam a condicionar a participação de artistas à renúncia de seus próprios direitos autorais? Essa contradição tem ocorrido em chamadas públicas de festivais e concursos promovidos por prefeituras em diferentes regiões do país.
O alerta ganhou as redes depois que veio à tona a surpreendente exigência de um dos eventos, o Festival Nova Lima Autoral, de Minas Gerais: para participar, os artistas são obrigados a renunciar à cobrança de direitos autorais através da gestão coletiva, ou seja, pelo Ecad e suas associações. E mais: devem declarar não pertencer a nenhuma associação, como a UBC e outras. Com a repercussão, outros casos similares começaram a ser denunciados. Em todos eles, segundo advogados especialistas em direito autoral, há um claro desrespeito tanto ao direito de associação previsto na Constituição Federal como à gestão coletiva, prevista na Lei de Direitos Autorais (9.610/98).
DRIBLE NA GESTÃO COLETIVA
O sistema brasileiro de execução pública funciona por meio de gestão coletiva. Ou seja: autores, intérpretes, editoras e produtores fonográficos vinculam-se a associações (como a UBC) que, juntas, formam o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). Essa estrutura tem a função de arrecadar e repassar os valores devidos sempre que uma obra for executada publicamente, inclusive em eventos promovidos pelo poder público.
Na prática, quando um município promove um show com repertório protegido, deve pagar os direitos autorais ao Ecad, que distribuirá os valores proporcionalmente aos titulares. Até é possível haver renúncia à gestão coletiva em situações pontuais, quando um intérprete executará canções 100% suas, por exemplo. Mas, em qualquer dos casos, isto nunca pode ser imposto, deve ser sempre voluntário e, presumivelmente, o artista acabará recebendo seus valores de uma forma direta, o que não está garantido nos editais em questão.
O que esses editais vêm tentando fazer é burlar o processo. Em vez de arcar com a arrecadação devida, os organizadores impõem uma condição prévia: assinar declarações atestando que não têm vínculo com nenhuma associação e que não exercerão, nem agora nem futuramente, o direito à cobrança pela execução pública de suas músicas. Com isso, busca-se isentar o município da obrigação de pagamento ao Ecad mesmo que, por exemplo, venha a lançar um CD ou um DVD com as músicas apresentadas no festival.
No edital do Festival de Música Autoral 2025, promovido pela Prefeitura de Nova Lima (MG), os candidatos devem assinar uma declaração afirmando que não são filiados a nenhuma associação de gestão coletiva e que exercerão “pessoalmente” o direito à execução pública. O documento também prevê que, após o envio da declaração, o artista não poderá reivindicar qualquer valor relacionado à apresentação.
Outros municípios têm adotado abordagens semelhantes. Em Muzambinho (MG), o regulamento do FestiMuza 2024 exigiu que os autores também declarassem não possuir vínculo com entidades de gestão coletiva e que abrissem mão do recebimento de direitos por execução pública. Questionado pela UBC, o cantor e compositor Evandro Navarro, atual diretor de música da Secretaria de Cultura local, afirmou que não participou da elaboração do anexo que trata da renúncia:
“Eu não conheci este documento. Realmente, é a primeira vez que o leio e tenho acesso ao conteúdo. Não tratei desta parte. Mas, de qualquer forma, sou do festival e responsável geral pelo evento, mesmo tendo tido os trabalhos de uma empresa terceirizada. Então, estou atento e disposto a caminhar junto no que houver necessidade.”
Mais exemplos seguem o mesmo padrão. O edital do Festival de Frevo de Ceilândia (DF) estabelece que as obras inscritas devem autorizar a “utilização integral e gratuita” (das canções), para fins de divulgação, gravação e execução pública. Já os festivais de Balneário Camboriú (SC) e Navegantes (SC) exigem um documento chamado “Declaração de Titular Não Filiado – ECAD”, com o mesmo propósito: driblar a gestão coletiva de direitos autorais.
Procurada pela UBC, a administração de Nova Lima informou que a medida visa garantir “autonomia aos artistas na gestão de seus próprios direitos” e evitar “entraves burocráticos”. A prefeitura da cidade mineira alegou ainda que a exigência não foi discutida previamente com o Ecad nem com as associações, e que sua aplicação se restringe ao festival em questão. As demais prefeituras não responderam aos pedidos de posicionamento até a publicação desta reportagem.
RISCO INSTITUCIONAL
Para a advogada Raquel Lemos, especialista em propriedade intelectual e fundadora da Lemos Consultoria & Art.is Cultural, as exigências contidas nesses editais deturpam o papel do Estado enquanto agente promotor da cultura.
“É um contrassenso exigir que o artista abdique de direitos assegurados em lei para acessar justamente o espaço que deveria fortalecê-lo. Quando o poder público utiliza o fomento como instrumento de renúncia, e não de reconhecimento, estamos diante de uma inversão perversa do papel do Estado na garantia dos direitos culturais. Ao invés de proteger os criadores, passa a exigir que abram mão da própria estrutura de proteção.”
Raquel Lemos. Foto: arquivo pessoal
Segundo Raquel, e como já mencionamos acima, a renúncia pode ser considerada válida em negociações privadas (como costumeiramente acontece em casas de shows), desde que haja consentimento expresso do autor. No entanto, a análise muda de natureza quando envolve recursos públicos.
“O debate aqui não se esgota na legalidade ou ilegalidade da cláusula apenas, mas no desvio de finalidade que ela representa dentro de uma política pública.”
A especialista também vê com preocupação cláusulas que impedem explicitamente a filiação a entidades de gestão coletiva. Para ela, essa conduta viola a liberdade de associação e compromete a integridade do sistema autoral brasileiro:
“Essa exigência é juridicamente questionável e viola princípios constitucionais como a liberdade de associação (art. 5º, XVII, da CF/88) e a isonomia entre os participantes de políticas públicas.”
A advogada recomenda que artistas e entidades do setor acionem o Ministério Público, os Tribunais de Contas e as Câmaras Municipais para contestar juridicamente essas exigências.
“A vulnerabilidade jurídica desses editais decorre, justamente, do fato de que muitas vezes são elaborados sem o devido critério jurídico, ou com interpretações distorcidas sobre direitos autorais e associativos, o que gera um risco institucional relevante.”
IMPACTO NOS ARTISTAS
Nos comentários das redes sociais, diversos criadores relataram a desistência de participar de editais por conta dessas cláusulas.
O cantor e compositor Balara foi um desses artistas.
“Optei por não participar de nenhum deles. Eu até já desisti de procurar e ler os termos dos novos, pois é sempre a mesma história”, lamentou. “Acho um absurdo dizer que está ‘valorizando a arte’ enquanto enfia um punhal nas costas do artista que não tem conhecimento jurídico.”
Já a cantora e acordeonista Adriana Sanchez destacou o contraste com modelos considerados corretos de fomento cultural:
“Todos os editais sérios não só resguardam como exigem o pagamento dos direitos autorais. E também exigem a comprovação do pagamento com documentos e comprovante bancário na prestação de contas.”
O músico, cantor e compositor Aniraldo Almeida Miranda observou que já havia visto situações similares em outros editais país afora. Já o arranjador vocal e compositor Antonio Cerqueira relembrou o espanto ao se deparar com a exigência pela primeira vez:
“Fere claramente o direito autoral em vários aspectos.”
VIGILÂNCIA E COORDENAÇÃO
A reportagem solicitou posicionamento do Ministério Público de Minas Gerais, mas não obteve resposta até o fechamento deste texto. Enquanto isso, o edital do Festival Nova Lima Autoral segue aberto, com inscrições previstas para encerrar nesta sexta-feira, 25 de julho.
Num vídeo sobre o tema publicado em seu perfil no Instagram, a cantora e compositora Bruna Campos, representante da UBC em Mato Grosso do Sul e especialista em direito autoral, alertou para os riscos de aderir, ainda que de forma inconsciente, a cláusulas abusivas. Segundo ela, a simples aceitação desses termos já implica a cessão definitiva dos direitos, independentemente do resultado do edital.
“Mesmo perdendo, seus direitos foram cedidos e não serão devolvidos a você.”
Ela também orienta os artistas a prestarem atenção à linguagem usada nos documentos:
“Sempre que a cláusula causar estranheza, há algo de errado nela. Questionem mesmo. Não abram mão de seus direitos.”
Diretor-executivo da UBC, Marcelo Castello Branco criticou a distorção da imposição dessas cláusulas por editais públicos.
"É preocupante e até alarmante quando o próprio poder público, muitas vezes utilizando fundos de fomento à cultura, subsidiados, contamina uma política pública com exigências de renúncia que não são voluntarias, e sim impostas como condição de participação. Substitui seu papel, que deveria ser de educação, pelo de coação. Intimida eventuais participantes com informações errôneas e deturpadas como, por exemplo, a de que o Ecad é uma associação, quando é uma instituição brasileira responsável pela arrecadação e distribuição de direitos autorais de músicas utilizadas publicamente. Associações são as sete que integram e dirigem o Ecad, como a UBC", explicou. "Municípios, hoje, são grandes promotores de eventos em todo o Brasil. Mas promover a evasão de direitos autorais no seu processo de fomento cultural não deveria ser seu papel nem função. Seguem no caminho inverso da educação e de sua vocação.”
À UBC, o Ecad informou ter "tomado conhecimento desse tipo de prática por meio do seu trabalho de captação e fiscalização de eventos em todo o país":
"Sempre buscamos o diálogo com as prefeituras e fundações culturais para esclarecer os impactos da exigência de declarações de gestão individual em editais. Todos os eventos públicos e privados que utilizam obras musicais protegidas devem realizar o licenciamento junto ao Ecad, conforme determina a Lei dos Direitos Autorais (9.610/98). O fato de não ter finalidade de lucro não é um requisito para o não pagamento. Organizadores e promotores de eventos, sejam da iniciativa pública ou privada, devem fazer o licenciamento musical e o pagamento dos direitos autorais de execução pública, determinados pela legislação."
O órgão informou ainda que existem situações em que pode realizar a cobrança mesmo diante de uma declaração de gestão individual (como a que algumas prefeituras estão forçando os artistas a assinar):
"Quando o próprio organizador do evento informa o uso de repertório além das músicas dispensadas; ou quando, durante uma fiscalização, for comprovado o uso de obras distintas daquelas declaradas. Neste último caso, trata-se de uma irregularidade, o que pode resultar na cobrança integral dos direitos autorais referentes ao evento."
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