Ava Rocha está entre os criadores da cena 2000/2010 que ela homenageia; ambas falam à UBC sobre os cruzamentos entre autores de sua geração
Por Alessandro Soler e Arthur Braganti, do Rio
Letrux. Foto: Bruna Latini
A compositora e cantora Letrux, em seu novo projeto musical, o espetáculo “20 anos Alternativa”, afasta do primeiro plano as obras de próprio punho para aventurar-se num show em que majoritariamente interpreta composições de outro autores da sua geração. Em comum a todos eles, militar na cena independente.
Cantora, compositora, atriz e escritora, Letrux põe em evidência a tênue fronteira entre todas essas expressões artísticas e reivindica o papel do intérprete como cocriador de uma obra.
“É a celebração de uma cena. Quis saudar amigos, amigas, colegas de profissão, com suas canções belíssimas, pois sei que tenho um público fiel e entusiasta. Há muitas pessoas novas no meu show, e muitos adoraram a proposta, descobriram coisas ‘novas’”, afirma a artista, que trouxe obras de criadores de diferentes partes do país, dos cariocas Ava Rocha, Thalma de Freitas e Kassin aos cearenses do Cidadão Instigado, passando pela baiana-pernambucana Karina Buhr e por um forte tributo à cena paulistana dos anos 2000/2010, com Céu, Tulipa Ruiz, Anelis Assumpção, Curumin, Metá Metá, além de muitos outros.
Ela destaca o sentido político para o repertório escolhido:
“Quis fazer um show celebrando a cena alternativa, e quis focar no período entre 2000 e 2015. Sinto que houve um recorte meio romântico, meio esperançoso nessa fase. Em 2016 (com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, tido por muitos como um golpe de forças reacionárias e anticultura), ficou impossível não entrar num lugar mais sombrio com a arte, de alguma maneira. Ainda fazíamos músicas sobre amor, mas pintou uma sombra no país que acabava entrando no assunto romântico, tudo se fundia, era difícil separar. No início do milênio, havia uma fé no futuro que, infelizmente, sinto que se perdeu.”
CANÇÃO DE AVA ROCHA
O abre-alas do show é a interpretação de Letrux para “Mar ao Fundo", canção lançada por Ava Rocha em 2015 — de autoria própria em parceria com Negro Léo —, e que dispara a dramaturgia musical. Ava, como Letrux, é autora-intérprete de múltiplas frentes: cantora, compositora, cineasta e artista cênica. Seu penúltimo disco, de 2018, traz no título “Trança”, uma palavra de força poética que sintetiza a ideia de cruzamentos e encontros buscada pelos integrantes dessa cena tão plural.
“Letrux está trazendo à tona uma história importante, que merece evidências, porque é óbvio que nossa geração mudou o rumo das coisas e construiu os alicerces do que temos hoje, com garra, coragem, invenção, ousadia”, Ava descreve.
Ao refletir sobre os encontros de compositores/intérpretes do mesmo segmento no palco e nas gravações mútuas de composições entre os pares, Ava abre um flanco para pensar o embate entre artistas independentes e o que se costuma chamar, na falta de melhor síntese, mainstream:
“Vivemos um mercado atual muito voltado a uma certa egotrip incentivada pelo algoritmo e pelos números. A vivência da coletividade que tivemos ali por volta de 2010, quando a música independente se colocava com força diante do mercado, foi perdida no pós-pandemia, que abriu um novo momento. A promessa do sucesso individual diante da dificuldade de um sucesso coletivo fez com que os próprios artistas começassem a se comportar muito como cordeiros, obedecendo às regras do 'game' sem nenhuma garantia, no entanto.”
Longe de se deter no diagnóstico, Ava vai além e oferece uma estratégia propositiva.
“Eu, pessoalmente, não vejo outro caminho que o de seguir na contracultura, radicalizando nosso papel e nosso caminho transformador. Na minha perspectiva, a ideia de ocupação de espaços de poder distanciou a ideia da criação de novos espaços. Se não formos capazes de retomar o senso do coletivo, da trança, ficaremos moldados entre as grades de uma cela, num eterno salva-se quem puder. Se todos bradamos contra o sistema, como acomodar-se e, sobretudo, crer nele como régua para a própria autoestima?”, provoca.
Ava Rocha. Foto: Cacá Meirelles
LETRUX COMO COMPOSITORA
Neste mesmo ano em que Letrux pisa forte no palco como intérprete, ela teve, pela primeira vez, uma composição sua gravada por um homem. E não um homem qualquer, mas um dos principais nomes de uma geração anterior à sua, a dos anos 1990: Zeca Baleiro. “Ninguém Perguntou Por Você”, cocriação de Letrux e Arthur Braganti, do disco “Em Noite de Climão”, foi a escolhida pelo cantor e compositor maranhense.
“Quando soube que Zeca Baleiro, artista que eu admiro imensamente desde o primeiro disco, gravaria a canção, fiquei muito contente, meio boba até. É um reconhecimento importante. É um cantor e compositor que eu amo, e é um homem gravando uma composição de uma mulher de uma geração posterior… É louvável. Mostra que o Zeca é um cara que está com as anteninhas ligadas, prestando atenção. Já fomos o país das intérpretes, mas acho que isso provocou uma avalanche de compositoras mulheres. Quando a gente veio, veio com força”, resume Letrux.
Ela encerra celebrando os cruzamentos variados entre os artistas afastados dos modelos de negócio do mainstream. Criadores que constroem espaços para encontrar saídas próprias, sem renunciar aos seus estilos e potencialidades. Uma ideia que Ava também defende enfaticamente:
“Meu desejo é que os artistas rompam essas correntes, não fiquem presos a uma só ideia de sucesso. Que possamos virar a chave interna da nossa perspectiva de sucesso, e que entendamos a arte como um poder espiritual de ação e conexão, da invenção do território com que sonhamos verdadeiramente."
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