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Torcuato Mariano: sotaque próprio
Publicado em 20/05/2019

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Violonista e guitarrista argentino radicado no Brasil há décadas lança “Escola Brasileira”, seu sexto álbum solo e uma homenagem às muitas referências que habitam sua cabeça essencialmente musical

De São Paulo

Radicado há mais de quatro décadas no Brasil, o argentino Torcuato Mariano fala português sem qualquer sotaque. Sua música, porém, é cheia deles. Acentos, sabores, cores, tudo é variado, rico. De Tom Jobim a Pat Metheny, de Toninho Horta a Milton Nascimento, de Ricardo Silveira a Hélio Delmiro, muitos grandes músicos o influenciaram, mas a fala musical de Mariano tem voz própria: respeitado violonista, guitarrista e compositor, atuou como acompanhante de mestres como Johnny Alf, Gilberto Gil, Djavan e Caetano Veloso, entre muitos outros, e há anos vem apostando numa sólida carreira solo.

Seu sexto álbum, “Escola Brasileira”, com dez faixas compostas quase todas por ele, e em parcerias com Carlinhos Brown ou Débora Cidrack, ajuda a entender tanta pluralidade. A linha condutora, porém, é bem nossa: a música daqui, com suas potencialmente infinitas combinações e sonoridades.

OUÇA MAIS: As dez canções de “Escola Brasileira” 

“Se eu tivesse que perseguir uma maneira de firmar meu violão, seria buscando um sabor de flamenco misturado a jazz e bossa nova, além de música brasileira em geral. Para a guitarra, adicionaria também o blues. Então, acho que definiria minha música como um jazz brasileiro pop com sabor latino”, afirma o artista, que diz basear sua criação num sentimento muito claro. “É o amor pelo ofício da música, a mistura de tudo o que se viu e ouviu com aquilo pelo que você se apaixonou. Temperado pelas pessoas que nos rodeiam, que amamos, nossos momentos mais importantes, minha esposa, meus filhos, meus pais, meus amigos.”

O disco foi produzido por ele mesmo, com arranjos de base também dele e a colaboração dos músicos acompanhantes, além de arranjos de sopro assinados por Rafael Rocha e alguns de cordas com a marca de Jessé Sadoc. “São dois gênios, de um bom gosto fora do comum. Sempre sonhei em ter um disco com esse nível de integração de naipes com cordas”, define Mariano, que, em entrevista à UBC por telefone, contou mais sobre o disco e seus processos criativos.

Por que decidiu fazer esse disco agora?

Fazia muito tempo que eu não gravava um CD meu. Este é o meu sexto. O que aconteceu foi que, enquanto eu estava trabalhando no conceito dele, compondo — e foram músicas que fiz ao longo de dez anos, depois que acabei meu penúltimo álbum, “So Far From Home” —, comecei a gravar em casa, para já ter uma demo mais definida, seis meses antes de entrar no estúdio. No início, eu tentava achar um caminho para ter uma estética definida. No dia em que fui gravar as três primeiras, em 2017, olhei para um relógio de rua que dizia 17 de outubro. Me deu um clique: hoje, exatamente, faz 40 anos que cheguei ao Brasil” Aquilo foi um sinal muito forte, me veio a sensação de que eu deveria fazer um disco homenageando a sorte que eu tive de vir morar aqui. Pela pluralidade musical daqui. Nenhuma faculdade me aportaria tanta riqueza musical como este lugar.

É uma espécie de contraponto ao momento tão instável e, em certo sentido, para baixo que nós vivemos?

Eu não teria uma pretensão desse tipo com a música. Eu não acho que a música seja uma ferramenta política consciente. Acho, sim, que a gente faz a música que está dentro da gente. Então, se eu quisesse fazer uma música mais assim ou assado, e quisesse comandar isso, provavelmente não iria ser verdadeiro nem ficaria bonito. Tem que vir da cabeça e do coração de cada um. Outra coisa é o público estar disposto para ouvir. Acho que as pessoas estão hiperativas demais e não têm a paz suficiente para parar e ouvir e degustar como se fazia antigamente. As pessoas estão muito aceleradas e desconectadas da experiência de ouvir música. Me arrisco a falar que muitos não ouvem as canções nem até a metade.

Como foi o processo de criação das canções? Você compôs tudo anteriormente? Ou algo também foi surgindo durante o processo de gravação, no estúdio?

As duas faixas cantadas, tanto “Cansei de Dor”, interpretada com o Djavan e uma parceria minha com Carlinhos Brown, como “Beyond The Paradise”, interpretada pela Toni Scruggs e uma parceria minha com a Débora Cidrack, partiram da música. Mas houve experiências variadas. Em “A Pata da Preta”, eu estava tocando violão, e saiu a música inteira. Foi assim também com “Cansei de Dor”. Fiz a melodia com a guitarra e mandei para o Carlinhos para ele letrar. Também aconteceu de pegar o instrumento e nascer a música inteira... Já em “Ouro de Minas”, eu fiz toda a base harmônica e tinha ideia da melodia, mas ela não vinha. Estabeleci uma data e passei o dia pré-definido por mim trabalhando até sair. “Jogando Bola”, que teve participação do Hamilton de Holanda, eu fiz pensando que tinha que aliar música e futebol. Pensava no balé do Ronaldinho Gaúcho, que parece um bailarino jogando com aquela ginga, e imaginava um casal dançando numa gafieira.

O Rio, esse sonho feliz de cidade tão associado ao universo da bossa nova que você evoca, ainda existe? Está difícil se inspirar na cidade ultimamente?

Esse Rio vai existir sempre que a gente, como cidadão, quiser. O que não existe são as pessoas que administram esse Rio. Mas a cidade continua no mesmo lugar, linda, com a mesma beleza que lhe deu a fama. Depende de nós conseguir que os administradores façam seu trabalho, aquele que a cidade merece. Talvez, por causa disso, seja agora, mais do que nunca, o momento especial para fazer milhões de músicas para a cidade. Se a gente deixar a bola dela lá em cima, todos vão ter que correr atrás para fazer da cidade o que ela merece ser.

O tipo de trabalho que você faz encaixa bem no formato álbum, conta uma história. Mas também cederia à onda do mercado e lançaria singles?

Minha maior briga comigo mesmo sempre foi buscar a certeza de que tenho uma unidade num disco, evitar a fragmentação. Que não pareçam canções de álbuns diferentes. É importante contar uma história. Assim, vai ter a chance de separar as músicas e elas funcionarem também como singles. O contrário, não. Se uma música não tem a ver com a outra, não acho legal.

Como analisa o panorama da música instrumental brasileira? Numa era tão imagética como a que vivemos, em que sentido a música sem letra pode fazer diferente?

O mundo moderno está muito diferente, as pessoas estão superconectadas pelos impulsos visuais, coladas às telas dos celulares... no restaurante, no cinema, em toda parte. Mas a música provoca tal conexão cerebral que ela permite que se ouça até de olhos fechados. O impulso auditivo perde um pouco na era das imagens, mas acho que, daqui a um tempo, as pessoas sentirão saudade da experiência que a música pura pode provocar. Ela é a arte que nos traz mais rapidamente a emoção e o divino. Faz viajar de uma maneira muito forte. Mas hoje, realmente, sinto que as pessoas dividiram e colocaram toda a sua sensibilidade para o impulso visual. E poluído, de péssima qualidade. Tem gente vendo seriado no celular. Muito surreal.

 


 

 



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