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Artigo: Desmantelamento do audiovisual
Publicado em 05/08/2019

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A postura do governo federal representa clara incompreensão em relação à indústria cultural

Por Sydney Sanches, do Rio

Originalmente publicado no Jornal O Globo, no dia 03/08/2019

O setor do audiovisual nacional vem acompanhando com espanto o desmantelamento pelo governo federal dos seus instrumentos regulatórios e de incentivo. A motivação matriz é um discurso conservador, com claro viés autoritário, que confunde políticas de Estado para incentivo à cultura com predileções ideológicas particulares. É realmente uma lástima um país com tantos problemas ainda ser obrigado a enfrentar uma avaliação equivocada em relação a um setor da economia que emprega mais de 300 mil pessoas, direta e indiretamente, titular de um faturamento anual de mais de 25 bilhões e integrante da indústria criativa que alcança cerca de 4% do PIB. A postura do governo federal representa clara incompreensão em relação à indústria cultural.

Ao intervir no Conselho Nacional de Cinema, subordinando-o à Casa Civil com a finalidade de controlar suas atividades e reduzir a participação da sociedade civil, ou afirmar que é necessário estabelecer “filtros” para escolha de projetos audiovisuais, definindo unilateralmente o que seria bom ou ruim para sociedade brasileira, o governo costeia perigosamente os limites da censura e se aproxima de regimes políticos retrógrados, desacreditando o país perante a comunidade internacional. No mesmo sentido, pretender a extinção da Agência Nacional de Cinema (Ancine), responsável pelas políticas de fomento, regulação e fiscalização do setor audiovisual, revela flagrante desconhecimento do papel desenvolvido pela Agência nos últimos 18 anos, que contribuiu para consolidação de um mercado audiovisual produtivo e respeitado.

Por certo, o governo tem a legítima prerrogativa de repensar o setor audiovisual e propor novos rumos para os mecanismos de incentivo, mas para isso precisa promover um amplo debate com a sociedade e os atores do setor cultural, que compõem uma indústria criativa diversificada e contribuem para construção da nossa identidade nacional, jamais agir isoladamente, a partir de convicções pueris, que irão desconstruir conquistas de décadas de trabalho, com graves prejuízos econômicos e sociais.

Independentemente dos modelos públicos ou privados de incentivos, os países que optaram por acreditar na arte e na promoção de seus ativos culturais encontram-se no rol das nações democráticas e desenvolvidas, que adotaram um valoroso regime de proteção para livre circulação das obras artísticas nacionais e estrangeiras, com o propósito de prestigiar autores, produtores e toda a economia criativa. Aliás, essas nações internalizaram os princípios civilizatórios e entenderam que a cultura é a tradução da própria identidade coletiva, sendo inadmissível interferir no processo criativo. Intervir na liberdade de pensamento e nas manifestações artísticas de qualquer categoria é transigir com as liberdades constitucionais e dialogar com o arbítrio, algo inadmissível nos dias atuais.

Ao invés de o governo utilizar o filme “Bruna Surfistinha”, um verdadeiro sucesso de público, como exemplo de uma agenda inútil de costumes para desqualificar e aniquilar a indústria audiovisual, seria mais inteligente valer-se dessa desmedida fixação para alavancar o conteúdo audiovisual, debatendo alternativas positivas para o fomento dessa indústria, como mecanismos para aumento do emprego e da arrecadação. Certamente, o resultado seria um lugar de destaque perante a comunidade internacional e fator de melhora de uma imagem antipática, torta e autoritária. A tentativa de implementar a agenda de costumes como política de Estado não ajuda o Brasil, representa um retrocesso social e só serve para encurtar as oportunidades de desenvolvimento econômico, pois inibe o setor produtivo a investir no setor cultural, tachado de nocivo pelo governo.

O presidente Bolsonaro não precisa gostar da Bruna e, ainda que inapropriado, até tenha o direito de verbalizar isso, mas não pode, por amor à liturgia do cargo e respeito aos direitos individuais, protegidos por nossa Constituição, pôr suas preferências pessoais como norte para política cultural do país.

Sydney Sanches é presidente da Comissão Nacional de Direito Autoral da OAB, Vice-Presidente do Comitê Jurídico da Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores, segundo vice-presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros e Consultor Jurídico da União Brasileira de Compositores.


 

 



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