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O fone de ouvido condiciona a produção musical?
Publicado em 23/01/2020

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Item quase obrigatório no consumo de canções hoje em dia, esse acessório estaria fazendo a música se adaptar às suas limitações técnicas. Ou quem corre atrás dos avanços musicais é o fone? Quatro produtores — Dudu Borges, Mahmundi, Rodrigo Gorky e Mary Lemos — comentam

Por Bruno Albertim, do Recife

No referencial livro “How Music Works” (2012), David Byrne, ex-vocalista do Talking Heads, evidencia como forma e conteúdo estão inteiramente dependentes quando se pensa em produção e consumo de música. A tecnologia disponível condiciona parte estruturante da produção. Byrne lembra, por exemplo, que a simplicidade harmônica da música medieval na Europa se devia ao fato de que notas em excesso se tornariam desagradáveis na acústica das catedrais. Diante das plateias enfumaçadas e barulhentas dos clubes de jazz, os trompetes altíssimos eram mais que necessários para captar a audiência. Hoje, a interface para digitalizar música conhecida como midi tem os teclados como fundamento.

A forma de se ouvir música também condiciona a produção. Com a proliferação dos fones de ouvido de última geração para conexão sem fio em celulares, o consumo não só deixa de ser coletivista e se individualiza, mas pede novos padrões estéticos. Graves adaptados aos pequenos alto-falantes, um canto mais intimista, quase sussurrado ao ouvido, menos elementos e camadas sonoras nas canções, de modo a não competir com os sons da rua e dos ambientes nos quais o ouvinte desfruta individualmente da música: tudo isso são adaptações já bastante perceptíveis.

Não podia ser diferente. Os adeptos do consumo digital da música se expandem aceleradamente. Segundo dados da companhia de análise de mercado Nielsen Music, em 2019, só entre Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha, os três principais mercados para a música digital no mundo, houve 966 bilhões de streams de música, em plataformas como Spotify, Apple Music, Amazon ou Deezer. Não é despropositado pensar que a esmagadora maioria dessas execuções foi consumida através de fones. Segundo análise da consultoria britânica Futuresource, o mundo gastou US$ 5,9 bilhões em fones de ouvido a cada trimestre do ano passado.

Ouvimos produtores de destaque no pop, no sertanejo e na MPB para entender como (e se) esses acessórios vitais condicionam a forma como se produz música hoje no Brasil. 


>> Dudu Borges: 
“Tivemos uma sonoridade mais seca, sem muitos efeitos, nas décadas de 1980 e 1990, junto com vozes e instrumentos com menos agressividade. Estamos entrando em uma nova era sonora e em um novo capítulo de artistas e formatos. Agora, os fones vêm para privilegiar e deixar mais agradável e confortável o consumo da música, que é mais intenso por conta do uso de celulares. Consigo enxergar que, com a ascensão de músicas com uma pegada trap/pop/urban cada vez mais intensa, os celulares ainda não conseguem reproduzir (tão bem) os graves, mesmo sendo estes mais fortes e firmes que em outras décadas. Acho que os fones vão se adequar para trazer essa sonoridade e essa sensação ao público. Não creio que será ao contrário. Um objeto, sozinho, não define a forma de se ouvir música. Nessa queda de braço, a música sempre vai vencer, e tudo em volta vai se adequar.”

>> Mahmundi:
“Estamos ainda entendendo essa evolução. Virão os fones que são preparados para sons mais graves e outros tipos de sons. O canto mais sussurrado é uma estética, e estamos lidando com músicas mais autotunáveis... As formas de ouvir música estão mudando, temos ferramentas que já existiam anteriormente, mas hoje com mais agilidade e resoluções mais rápidas. Se as pessoas continuarão a ouvir álbuns inteiros como se ouvia anteriormente ainda não sabemos. Artistas fazem álbuns para colocar suas sensações no mundo, produtores permitem que eles se expressem. No meu último álbum, havia canções tão diferentes entre si, como se parecessem parte de uma playlist, para que a ordem de audição das faixas pudesse ser desmembrada. Se um álbum toca uma pessoa, ela escuta duas ou três vezes. Antigamente, a gente tinha uma só forma de fazer uma coisa, hoje são várias. Tudo pode ser construído de uma forma inteligente, a tecnologia traz as possibilidades para não nos prendermos a fórmulas.”

>> Rodrigo Gorky:
“A música deixou de ser algo principal para se tornar coadjuvante. Não quero ser nostálgico, mas me lembro de quando reservávamos um 'tempo' para ouvir musica, tínhamos que estar ali para virar o disco. Aí vieram o discman, o iPod e o celular, facilitando ainda mais a concentração de muitas músicas num pequeno aparelho. Isso fragmentou muito a audição. Pulamos muito facilmente de uma canção a outra. Mas o engraçado, para mim, é que, mesmo com todo o acervo possível, a gente sempre acaba meio que ouvindo o que conhecemos ou aquilo para o que somos direcionados. Mas é fato que música virou adereço. Então, você precisa ser mais objetivo, ir mais direto ao ponto. A objetividade (nas introduções, nos refrãos) tem que estar presente. Como diria Berry Gordy já nos anos 1960, numa citação que sempre levei muito no coração, 'don't bore us, get to the chorus' (não enche, vai logo para o refrão, em tradução livre). E, se isso vem do cara que fez a Motown ser o que foi, não posso discordar.”

>> Mary Lemos
“Minha percepção é meio derrotista (risos). Antes, a gente sentava e botava um bom disco e dedicava tempo à percepção dele. Acho que se perderam camadas e qualidade entre o vinil e o MP3. Eu tenho uma teoria: acho que daqui a cem anos não vai existir nem música. Quero dizer, não haverá a materialidade da música. Tudo estará numa grande nuvem. Tenho até um roteiro de uma ficção para cinema sobre isso.”

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