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400 mil músicas em domínio público nos EUA
Publicado em 21/02/2022

Entenda como e por que a lei americana liberou todas as canções anteriores a 1923

Por Ricardo Silva, de São Paulo

Sophie Tucker, a cantora e atriz que foi estrela da lendária gravadora Edison, está entre os titulares cujas gravações acabam de entrar em domínio público. Foto: WikiCommons

DJs já começaram a fazer remixes a partir delas. Um site especial foi criado para disponibilizá-las. E o Spotify conta com playlists recheadas delas, com milhares de audições todos os meses. Afinal, o que têm de tão especial as 400 mil gravações da aurora da indústria fonográfica que vêm circulando com velocidade cada vez maior nas últimas semanas, e que incluem pérolas do músico e teórico do jazz Jerry Roll Morton, da cantora de blues Mamie Smith e da pioneira cantora de rádio Vaughan de Leath, entre tantos outros? 

A resposta curta é: todas elas, que representam 100% do que foi gravado antes de 1923 naquele país, estão em domínio público desde o último dia 1º de janeiro, na primeira liberação maciça de fonogramas por fim do prazo de copyright da história musical americana. A resposta longa: isso se deu graças ao celebrado Music Modernization Act (MMA), a lei de direitos autorais aprovada naquele país em 2018 que adaptou o mercado à era digital e, de quebra, padronizou as regras de um complexo e intricado regime de proteção à criação artística e intelectual. 

Os Estados Unidos demoraram quase 103 anos para colocar em prática a Convenção de Berna, primeira a definir um prazo de validade para os direitos autorais após a morte do(s) seu(s) criador(es). Foi só em março de 1989 que começaram a valer por lá as regras desse acordo internacional publicado em outubro de 1886 e que, originalmente, estipulava 50 anos de duração dos direitos após a morte do último dos seus autores. Revisões posteriores e diferentes legislações nacionais ampliaram o prazo para 70 anos (período adotado na maior parte do mundo), podendo chegar a 100 anos em alguns territórios.

Como herança direta da lógica inglesa, sempre prevaleceu na ex-colônia a lógica do copyright (proteção à obra) sobre a dos direitos autorais (proteção ao criador da obra), daí as leis locais terem se centrado no direito de cópia e reprodução das músicas, com prazos que foram variando ao longo das décadas. Foi só em 1972 que os fonogramas passaram a contar também com proteção; até então, apenas a obra era contemplada. Como algumas obras já gozavam de copyright, e os fonogramas foram incorporados depois, isso criou às vezes grandes discrepâncias nos prazos para que uma obra e sua respectiva gravação entrassem em domínio público.

Por isso, o MMA estabeleceu um calendário organizado com faixas de liberação. A partir do ano que vem, e até 2046, começarão a entrar em domínio público, a cada 1º de janeiro, as gravações que tiverem pelo menos cem anos. Depois disso, teremos que esperar até 2056 por uma nova onda de liberações maciça, referentes a gravações de até 115 anos de idade.

Como todas as gravações e obras lançadas a partir do momento em que os EUA aderiram a Berna (1989) já têm a lógica da proteção centrada no autor, haverá um momento em que o período de publicação será totalmente substituído pelo 1º de janeiro seguinte à data em que se completam 70 anos da morte do último dos titulares. A exceção serão as chamadas de obras de autoria corporativa. Basicamente, são aquelas em que a empresa que a encomendou é a titular do copyright, sem que conste uma pessoa física como autora. Neste caso, o direito de exploração exclusiva vale por 120 anos depois da publicação. 

Playlists concorridas

A recente liberação das canções vem fazendo barulho entre pesquisadores e apreciadores de músicas antigas. Clássicos de Sophie Tucker, cantora, atriz e comediante que, nos anos 1910, gravou diversos discos pelo lendário selo Edison, já estão sendo incluídos em listas no YouTube e estão disponíveis até mesmo para remixes de DJs. 

No Spotify, estão cheias de gravações já em domínio público as playlists de Jelly Roll Morton, um celebrado pesquisador do jazz, pianista, compositor e cantor; de Vaughan de Leath, considerada a primeira cantora do rádio dos Estados Unidos e uma das primeiras mulheres brancas a gravarem jazz; e da lendária big band New Orleans Rhythm Kings. Alguns desses clássicos, com centenas de milhares de audições (caso de Sophie Tucker), são reunidos em diferentes listas que incluem a expressão Public Domain. 

Mas isso significa que ninguém recebe nada quando um ouvinte consome uma gravação ali contida?

Não é bem assim. É o que explicou recentemente à UBC Marisa Gandelman, advogada especialista em direitos autorais: "As obras que estão em domínio público podem ser livremente executadas, portanto não entram no cálculo da distribuição. Podem gerar receita, mas não derivam em rendimento aos seus titulares ou herdeiros. Mas existem exceções, como o caso dos países em que as sociedades cobram os direitos das obras em domínio público e o usam com finalidades assistenciais (para distribuição ou programas de assistência aos seus associados mais necessitados), por exemplo."

Nos países onde não há essa distribuição assistencial, também podem ser gerados valores pelas plataformas quando gravações em domínio público são executadas. Ainda que as cifras não cheguem a ser muito significativas, elas entram no bolo total da distribuição aos titulares que têm direitos conexos. O método para determinar quem recebe quanto é o mesmo da distribuição geral: o market centric. Para quem não se lembra, se trata do sistema utilizado por quase todas as plataformas, no qual toda a receita gerada num determinado período é juntada num único bolo e distribuída aos titulares proporcionalmente ao número de execuções que eles tiveram, independentemente do que cada assinante do serviço tenha escutado naquele período.

Ou seja, eventualmente os autores vivos poderão se beneficiar das receitas geradas pelos há muito tempo mortos. Mas com um detalhe irônico: como o modelo market centric tende a favorecer inequivocamente os campeões de execuções, é possível que sejam os pesos-pesados da indústria fonográfica atual, como The Weeknd, Dua Lipa, Ed Sheeran e Ariana Grande (os mais populares do Spotify, segundo dados de fevereiro de 2022), os maiores beneficiados pelas gravações deixadas pelos pioneiros da indústria fonográfica.

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