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Alguma coisa acontece em Pernambuco
Publicado em 27/07/2018

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Conheça alguns – e só alguns – dos diversos nomes que fazem a cena musical contemporânea desse estado ser, de longe, uma das melhores do Brasil 

Por Bruno Albertim, do Recife

Foto de Maria Eduarda Portella, no Recife

Mais de 20 anos depois de Chico Science e Nação Zumbi terem lançado “Da Lama ao Caos”, disco que borrou fronteiras entre o rock e o maracatu, a psicodelia e a ciranda — reiventando, com golpes fartos da cultura popular nordestina, o pop nacional —, a música pernambucana contemporânea parece ter sua primeira grande geração com contornos de identidade definida. Sem quaisquer referências ou heranças de alfaias e batuques eletrificados, mais de duas dezenas de intérpretes e compositores de Recife e adjacências fazem música ancorada, sobretudo, no poder da palavra. 

“Talvez o que defina esta geração seja o gosto pelo canto, pela poesia, pela melodia”, diz o sertanejo Zé Manoel, cantor e compositor celebrado como uma das renovações da música brasileira, festejado e requisitado por intérpretes como Ana Carolina e Vanessa da Mata, já dono, depois de apenas dois discos autorais, de um inesperado cancioneiro com sua obra. Em “Delírio de um Romance a Céu Aberto” (Joia Moderna), Ná Ozzeti, Jussara Marçal, Elba Ramalho e Fafá de Belém, além de Ana e Vanessa, dão corpo à obra de Zé. “É realmente um presente”, sintetiza ele, um entre mais de 20 novos nomes que traduzem essa nova música de Pernambuco.

Quem assistir aos espetáculos da turnê “Refavela 40”, em que Gilberto Gil relembra e comemora as quatro décadas de seu álbum antológico, vai se deparar com a voz sui generis, como que ondulada entre Björk e as músicas de Debussy, da jovem Sofia Freire (na foto acima). Com apenas 20 anos, ela chamou atenção do guru tropicalista com seu timbre único impresso numa música popular plena de incursões experimentais e texturas psicodélicas, uma musicalidade amparada pelo erudito e pelo eletrônico. Seu elogiado segundo disco, o recém-lançado “Romã”, comprova como a cantora que, aos 15, usava as poesias do pai, Wilson Freire, e da irmã, Clarice Freire, para fazer música ao piano, vai ganhando musculatura. “Não tenho a mínima ideia de como definir a música que faço”, brinca ela, que corre o país com a turnê de “Romã”. 

"Talvez o que defina esta geração seja o gosto pelo canto, pela poesia, pela melodia."

Zé Manoel

Outra voz deste cenário que vem ganhando presença e já trilha seu caminho por todo país é a do caruaruense Almério. Aos 37 anos, ele roda o Brasil com a turnê de “Desempena”, seu elogiado segundo disco, está prestes a gravar o primeiro DVD e embarca também para a primeira gira europeia. Uma viagem na coragem: “Vamos aproveitar que faço os shows de abertura de O Grande Encontro (o espetáculo coletivo de Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Alceu Valença) e esticaremos para tocar em algumas cidades europeias. Vamos bancando tudo”, diz esse artista que começou a cantar na noite enquanto passava os dias trabalhando numa banca de revistas. 

NEY: “ALMÉRIO, VOCÊ VEIO PARA FICAR”

Almério (à direita) em show com Mariene de Castro. Foto de Ana Migliari

De voz firme, aguda, andrógina, comparada com frequênia à de Ney Matogrosso, Almério teve uma visita do ídolo em seu camarim quando apresentou, no começo do ano, um show em parceria com a baiana Mariene de Castro, no Teatro do Jóquei, no Rio. “Almério, você veio para ficar”, disse-lhe Ney naquela noite. 

Diretor do show de Almério com Mariene, espetáculo que também está prestes a percorrer o país e virar DVD, o diretor do Prêmio da Música Brasileira José Maurício Machline é outro entre o coro de entusiastas do cantor. “É raro ver uma pessoa com a capacidade vocal e interpretativa do Almério. É quase impossível alguém assim no Brasil, hoje”, diz. “Sem medo de errar, Pernambuco tem hoje o cenário musical mais interessante do país.” 

Parceiro tanto de Zé Manoel como de Almério, o compositor, maestro e intérprete Juliano Holanda é um nome fundamental para se entender a música feita atualmente no Recife. Aliás, ele é “o” nome. Produtor de uma enxurrada de discos locais, compositor requisitado por todos, Juliano é uma espécie de guru da nova cena. Fábrica incansável de novas composições, tem participação em mais de 60 álbuns, mais de 25 anos de uma carreira iniciada ainda na pré-adolescência e mais de 150 músicas gravadas por vários interpretes. De um pop imagético, literário, rico em aliterações, ele chegou a assinar, por exemplo, a trilha sonora da minissérie “Amorteamo”, da TV Globo. 

Diretor musical dos recentes discos de Almério e da cantora Isadora Melo, Juliano não lança disco próprio desde “A Arte de Ser Invisível” (2015), um disco de um pop sofisticado, cujo título ironiza justamente a “invisibilidade” do músico sempre por trás de discos alheios. “Até o final do ano, sai um novo disco meu”, garante, entre risos. Juliano vai também ajudando a batizar essa cena.

Se a geração de Tom e Vinícius ficou conhecida por bossa nova porque, sem saber como classificar a sofisticada junção de samba e jazz, alguém acabou por colocar o termo da moda num cartaz para anunciar um show no Rio de Janeiro, é possível que a atual cena pernambucana seja reconhecida como “Geração Reverbo”. Reverbo é justamente o nome do show de elenco variável, nunca menos de dez vozes em cena, em que intérpretes vários têm se reunido para mostrar a fé na canção. “Reverbo não é um movimento, mas uma movimentação”, adianta Juliano. Entre esses intérpretes, estão mulheres de vozes fortemente delicadas como Flaira Ferro, Isadora Melo e a já citada Sofia Freire. 

Flaira Ferro, destaque da "geração Reverbo". Foto de Bruna Valença Coutinho

TRÊS MULHERES SUPERPODEROSAS

A primeira provocou muito barulho com o clipe da canção “Coisa Mais Bonita”, uma balada tipicamente ritaleeniana sobre masturbação feminina. Com oito mulheres praticando o prazer solitário, o clipe acabou sendo banido provisoriamente do YouTube quando de seu lançamento. E rendeu, claro, muita discussão. “A ideia foi questionar a autoestima da mulher e quanto ela conhece de seu próprio corpo”, disse a cantora, dona de um pop afiado e afirmativamente feminino. 

Voz fundamental da música pernambucana contemporânea pós-mangue, incisiva e suave, a cantora Flaira surgiu depois de, ainda menina, firmar-se como bailarina. No que não há quaisquer contradições: “Cantar é apenas uma forma de dançar com a voz”, define Flaira, que vai fechando a carreira de shows de “Cordões Umbilicais”, seu disco de 2015, de arranjos inspirados nos ritmos brasileiros em diálogo com elementos das músicas eletrônica e erudita. 

“Reverbo não é um movimento, mas uma movimentação."

Juliano Holanda

Depois de circular em importantes festivais da música independente nacional e internacional, como Recbeat (PE), Prata da Casa (SP), Festival La Soufflerie (França), Festival Ilumina (GO), Festival de Inverno de Garanhuns (PE), Festival Rio2c (RJ), Flaira viu seu disco entrar na lista dos cem melhores lançados no ano pelo site Melhores da Música Brasileira.

A SOFISTICAÇÃO DO SERTÃO

Tonfil: "Cantar é pintar ou esculpir com a voz." Foto de Mariana Pinheiro

Se a geração inicial de Chico Science, Fred Zero Quatro e Otto tinha uma poética ancorada nas parabólicas que captavam coisas de outros cantos, a nova musicalidade pernambucana amplia também sua geografia poética. Incorpora, por exemplos, elementos fortes da tradição da poesia sertaneja - e também artistas nascidos nessas latitudes. Dono de uma voz aveludada, aderente, firme e suave, Tonfil, 28, traz o Sertão do Pajeú para esse caldeirão contemporâneo do estado. 

Natural de São José do Egito, neto do compositor Louro do Pajeú, celebrado por estudiosos e apologistas de todo o mundo como um mestre do improviso rimado na poesia popular sertaneja no século 20, Tonfil cresceu entre rodas de repente, leitura de eruditos, como Fernando Pessoa, e a música da região. Aos 12 anos, já participava dos festivais da cidade. Artista plástico, escultor e pintor conhecido pelos quadros figurativos em que relê práticas pictóricas do Renascimento, depois de um demo, ele está prestes a lançar um disco com direção musical, não por acaso, de Juliano Holanda. “Além dos que me antecederam e me influenciam, tenho a sorte de ter muitos amigos da minha geração que são excelentes compositores e com os quais posso contar”, diz ele, que não vê barreiras entre suas práticas artísticas. “Cantar é apenas pintar ou esculpir com a voz.” 

Outro de voz magneticamente andrógina, com timbres que lembram Caetano, Thiago Martins está também prestes a lançar seu primeiro disco solo. Martins faz parte da Marsa, um sexteto vigoroso formado por Carlos Amarelo, Rogério Samico, Rodrigo Samico, Rogê Victor, Rodrigo Félix e Thiago Martins, que lançou, em 2016, Circular Movimento. 

E mais bolachinhas pernambucanas estão a caminho. Depois de finalizar o ciclo de “Miocardio”, seu álbum de estreia (2016), Barro apresenta “Somos”, faixa-título do próximo disco, com previsão de lançamento independente para este ano. "'Somos' foi a primeira música que surgiu desse novo ciclo de composições e veio de uma forma potente, como se apontasse para um novo caminho. Além disso, é uma tradução do espírito do disco e do nosso tempo, a afirmação da coletividade, da força da união das energias", resume.


 

 



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