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Quando as playlists esbarram no direito moral
Publicado em 02/02/2018

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O uso de músicas como promoção comercial de marcas e empresas tanto pode ajudar a divulgá-las como deixar alguns autores desconfortáveis. Pois saiba: os criadores sempre terão o poder de vetar a inclusão

Por Andrea Menezes, de Brasília

Este ano se celebram os 90 anos da Convenção de Roma, uma das inúmeras revisões que foram agregando novas normas ao primeiro instrumento legal internacional de proteção aos direitos autorais, a Convenção de Berna, de 1886. Se Berna estabeleceu as bases do reconhecimento dos direitos materiais dos autores sobre suas obras para além dos seus próprios territórios, Roma sedimentou, pela primeira vez com claridade, o conceito de direito moral.

O documento assinado por dezenas de países na ocasião — e plenamente reconhecido pelo Brasil somente muitas décadas depois, em 1975 — torna a obra indissociável da personalidade do autor. Este pode vetar, por exemplo, quaisquer interferências e modificações que considere ofensivas a sua honra ou reputação, mesmo que tenha vendido ou cedido os direitos patrimoniais a terceiros. Ou seja, o que a Convenção de Roma ratificou foi a existência de dois tipos paralelos de direitos: o de o autor receber pelo uso e a exploração da obra, em seu próprio país ou em outros territórios signatários; e o de impedir usos ou alterações indevidas. Este último, o direito moral, não pode ser cedido; ou seja, o autor jamais o perde.

Passados tantos anos, um tipo de agregação musical tão característico da era digital chegou para bagunçar um pouco essa equação, levantando dúvidas sobre os limites atuais do direito moral. Se trata das playlists, que, cada vez mais exploradas comercialmente por marcas e empresas variadas em plataformas de streaming — como uma extensão da sua promoção comercial —, podem deixar alguns titulares, no mínimo, desconfortáveis.

"A empresa que faz a playlist também está lucrando com aquela música, que ajuda a criar uma imagem, uma ideia. Não está sendo boazinha com o artista."

Marisa Gandelman, advogada especialista em direitos autorais

Em novembro passado, a inclusão da música “Ainda Bem”, dos Tribalistas, numa playlist executada publicamente durante um evento de inauguração de uma obra da gestão João Doria (PSDB) levada a cabo em São Paulo com patrocínio da Nike levou dois de seus autores, Marisa Monte e Arnaldo Antunes, a reclamar publicamente e pedir a exclusão do vídeo em que ela era ouvida. Doria se defendeu com postagem nas redes sociais em que alega que os artistas pediram R$ 300 mil pela veiculação, o que eles negam. Marisa e Arnaldo pediram uma compensação para ser doada a instituições de caridade, mas mostraram desconforto pelo próprio uso de uma obra sua — ainda mais sem autorização — num ato político.

“Quando é assim, é escancarado e, portanto, muito fácil aventar a questão do direito moral. Mas, numa playlist, há uma lógica perversa”, diz Marisa Gandelman, advogada especialista em direitos autorais, professora e ex-diretora executiva da UBC. “A lógica materialista vende a ideia de que aparecer na playlist de uma grande marca é, na verdade, um privilégio e uma excelente oportunidade de divulgação e exposição da música, aumentando até a possibilidade de mais ganhos. Mas não é só isso, não. A empresa que faz a playlist também está lucrando com aquela música, que ajuda a criar uma imagem, uma ideia, um conceito, usufruindo da criação alheia. Uma coisa é certa: a marca que faz a playlist não está sendo, de modo algum, boazinha com o artista.”

"O número de visualizações da música e do vídeo nas plataformas digitais bombou demais. O que isso representou em divulgação do nosso nome é uma doideira."

Russo Passapusso, líder do BaianaSystem

A questão comercial que ela aventa é inegável. Principalmente para um artista iniciante ou sem tanta projeção, entrar numa playlist de uma megamarca é uma grande possibilidade de fazer a música circular. A sincronização da música “Playsom”, do BaianaSystem, no videogame “Fifa 16”, deu grande visibilidade à música — e à banda. Primeiro, no universo relativamente limitado de jogadores do game. Depois, com outra dimensão, muito maior, pela inclusão em playlists, no YouTube e no Spotify. “O número de visualizações da música e do vídeo nas plataformas digitais bombou demais”, descreveu ao site da UBC Russo Passapusso, um dos líderes da banda, vocalista e autor da música. “Retorno financeiro direto não foi o mais importante. Afinal, foi um cachê fixo, não foi muita grana, não. Mas o que isso representou em divulgação do nosso nome é uma doideira.”

No caso dele, foi positivo — e, principalmente, acordado mediante contrato e cumprindo com todas as obrigações, entre elas a exposição dos nomes dos compositores. Mas, se o uso não deixar o autor confortável, se trata de óbvio desrespeito ao direito moral. “Pode mandar tirar, sem dúvida alguma. E não há discussão. Agora, com a desvalorização do autor que temos experimentado nas últimas décadas, com tantas questões comerciais e de exposição em jogo, vai haver pressão, vai ser preciso coragem para bancar”, finaliza Marisa Gandelman.


 

 



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