Instagram Feed

ubcmusica

No

cias

Notícias

Fraudes, fazenda de cliques, falsas autorias: desafios no streaming
Publicado em 16/11/2022

Formas de tirar vantagem do sistema se multiplicam e sofisticam, trazendo prejuízos para autores e outros titulares

Por Eduardo Lemos, de Londres

Salvação da indústria fonográfica e ambiente em que circula grande parte dos bilhões de dólares gerados a cada ano com a música, o streaming virou também um território de fraudes, artificios de ética duvidosa e tentativas de manipulação que prejudicam a correta distribuição de direitos autorais. Nos últimos anos, problemas como empresas que "vendem" audições falsas e a publicação de conteúdos sem autoria ou com autores inventados vêm atormentando as plataformas, que precisam investir tempo, recursos e tecnologia para aperfeiçoar seus mecanismos antifraude. Entretanto, não param de surgir maneiras mais intrincadas de tirar vantagem do sistema.

Um tipo de fraude que tem chamado a atenção tira proveito da onda da  "ambient music", as faixas que reproduzem sons de chuva, do vento e de ondas do mar, por exemplo. Com este gênero "musical" acumulando milhões de plays num mundo convulso em que as pessoas buscam tranquilidade e relaxamento, infratores têm enxergado aí uma forma de ganhar dinheiro. Há relatos de pessoas buscando arquivos como estes em bancos de dados sonoros de uso livre, ou seja, que não foram criados nem pertencem a elas, e publicando-os dentro da plataforma como se fossem seus.

"Infelizmente, é difícil para as distribuidoras fazerem o controle. A proteção contra este tipo de fraude na era digital ainda é limitada", explica Peter Strauss, gerente Internacional e de Licenciamento da UBC.

Sucessos misteriosos

Um exemplo de "ambient music" de enorme sucesso - não necessariamente ligado a nenhuma fraude - é a faixa "White Noise Waterfall", lançada no ano passado. Com 2 minutos e meio de barulho de cachoeira, ela já soma só no Spotify 85 milhões de plays (o mesmo número alcançado por Anitta com seu hit "Girl From Rio", que também saiu em 2021).  O problema de "White Noise Waterfall", porém, é não ter um autor declarado. O suposto artista que a lançou, identificado nos créditos como "Sleep Sleep Sleep", não existe fora dos domínios da plataforma.

Para complicar a coisa, o modelo de remuneração das plataformas de streaming, incluindo o Spotify, é 'market centric': todos os plays mensais são somados e divididos proporcionalmente entre todo mundo que teve audições. Ou seja, Anitta e os demais titulares de "Girl From Rio" estão recebendo o mesmo valor que "Sleep Sleep Sleep", um artista que muito provavelmente nem existe.

Há ainda uma questão artística a ser ponderada. Para ficar no mesmo exemplo, "Girl From Rio" demandou investimento criativo e financeiro da artista e de seu entorno, e gerou emprego para vários profissionais; a faixa com som de cachoeira não trouxe nenhum ganho à indústria da música.

>> VEJA A COMPARAÇÃO DO DESEMPENHO ENTRE AS DUAS 'CANÇÕES'

O problema dos falsos artistas

"Há grupos de selos e gravadoras que 'criam' artistas e publicam suas músicas no Spotify. E muitas vezes estas músicas ganham destaque nas playlists curatoriais, que são as mais ouvidas. Aí você tem um artista totalmente desconhecido, que não tem site, não tem agenda de shows, mas que tem uma faixa com milhões de plays", diz Strauss.

Há até a suspeita de que artistas com estas características possam ser pseudônimos do próprio Spotify. Segundo esta teoria, a empresa contrataria estúdios e músicos para criar canções. Uma vez "dona" das obras, a companhia não precisaria pagar direitos autorais. A empresa sempre negou as acusações veementemente.

Em um artigo publicado em abril, o crítico musical e historiador norte-americano Ted Gioia classificou o tema dos falsos artistas como "muito pior do que podemos imaginar":

"A raiz do problema está na crescente passividade com que consumimos música. As pessoas estão pedindo à Alexa, ou algum outro assistente digital, para encontrar a trilha sonora de uma atividade qualquer - estudar, malhar, faixas, relaxar etc. Ou vão em busca de uma playlist pré-curada. Em ambos os casos, não prestam atenção no nome dos artistas ou no título das músicas, e isso é o que cria oportunidade para abusos."

O caso dos falsos artistas, aliás, remete a outro imbróglio recente: a falsa atribuição de autoria, quando intérpretes de muito sucesso exigem coautoria de canções que eles não compuseram. Autores insatisfeitos com a prática chegaram a criar um movimento em 2021 chamado "The Pact", em que denunciavam a maquinação e pediam mudanças. Se não chega a ser uma fraude técnica, a falsa autoria certamente é uma polêmica (de longa data, mas cada vez mais denunciada).

LEIA MAIS: Conheça em detalhes a campanha que pede o fim da falsa atribuição de autoria

Falsos positivos de uso ilegal de samples

Todas as plataformas digitais usam algoritmos de identificação que protegem os direitos autorais de uma música. Isso basicamente impede que alguém possa publicar como sua uma faixa registrada por outro artista. No entanto, há casos em que o sistema barra a publicação de uma faixa por motivos errados. É o que tem acontecido com produtores que utilizam em suas músicas beats e samples comprados legal e legítimamente em livrarias sonoras, como o Splice. Uma batida de bateria, por exemplo, está disponível para todos os usuários da plataforma; se dois ou mais produtores usarem este mesmo som em faixas diferentes, o algoritmo entende que apenas um deles é o dono; os outros se tornam automaticamente infratores.

"Recentemente, uma pessoa se aproveitou disso, pegou um monte de samples dos mais populares dessas plataformas e os carregou como música no Spotify. Então, muitos produtores pararam de utilizar sites como o Splice porque estão com medo de uma música sua ser apagada da plataforma por violação de direito autoral, o que nestes casos não seria verdade", relata Peter Strauss.

Velhos e novos problemas

Na década passada, o Spotify passou um bom tempo combatendo práticas semelhantes às "fazendas de cliques" das redes sociais, em que robôs e até pessoas inflam artificialmente likes e comentários. Já nas "fazendas de streams", o objetivo é aumentar o número de vezes em que uma música é executada dentro da plataforma. A intenção é melhorar a imagem do artista, que usa esses números falsos para se vender melhor no mercado ou, simplesmente, gerar lucros ilegais. Em 2019, circulou um número - nunca oficialmente confirmado - de que cerca de 4% dos plays no mundo viriam de fontes ilegítimas como essa.

LEIA MAIS: Manifesto global contra a manipulação de streams ganha cada vez mais força

“O problema principal desse tipo de fraude é que ele cria um campo de jogo desigual, já que alguns conteúdos recebem um empurrão através de métodos de marketing duvidosos como as fazendas de cliques. Algumas companhias oferecem pacotes de compras de streams no Spotify, seguidores no Instagram ou visualizações no YouTube. Este sistema impacta os resultados legítimos do streaming e cria receitas que não estão amparadas em audições reais”, destacou o pesquisador francês Emmanuel Legrand num detalhado estudo sobre o mercado de streaming publicado mês passado pelo Gesac (Grupo Europeu das Sociedades de Autores e Compositores).

De fato, como atesta Maurício Bussab, sócio da distribuidora brasileira Tratore, há diversos "serviços" que chegam a garantir duzentos mil plays ao mês.

"Se você contrata um serviço de promoção que parece bom demais para ser verdade, é porque deve ser fraude", alerta.

Ele diz que o Spotify, ao perceber o problema, simplesmente apaga a música da plataforma.

"Um artista aqui comprou uma assinatura familiar e colocou todos os 4 'usuários' (na verdade, 4 janelas de navegador) ouvindo a faixa dele, dia e noite. Depois de um mês, o Spotify tirou a música do ar e não lhe pagou nada. As plataformas se dão o direito de não pagar se for fraude. Os termos de uso as amparam", observa.

Por fim, Bussab alerta para uma nova modalidade de fraude, que não envolve sons.

"Temos tido imensos problemas com propriedade intelectual nas capas. O pessoal está pegando nome de anime, sample de anime, imagem de game para usar como capa de single ou disco. Nada disso pode."

LEIA MAIS: A playlist de Natal do Spotify e a lógica da música movida a curtidas

LEIA MAIS: Algoritmos e métricas estão tornando as músicas pop todas iguais?

LEIA MAIS: Pitch: como emplacar sua música numa playlist editorial no streaming


 

 



Voltar