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A indústria musical e as plataformas de streaming: mal-estar crescente
Publicado em 13/03/2023

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Especialistas comentam críticas do CEO da Universal ao modelo de remuneração, aos algoritmos e às faixas encomendadas pelas plataformas

 Por Eduardo Lemos, de Londres

Players importantes da indústria musical andam insatisfeitos com os rumos do streaming de áudio. Enquanto se acumulam sinais de que as plataformas têm investido cada vez mais na negociação direta com produtores e artistas — mais que isso: elas estariam encomendando suas próprias canções —, aumenta o mal-estar entre as gravadoras, que veem suas músicas perderem espaço em apps como Spotify e Apple Music. Soma-se a isso o eterno debate sobre um novo modelo de remuneração que melhore a vida de criadores e músicos, e tem-se o imbróglio perfeito: existe uma maneira de dividir o suculento bolo do streaming de maneira que todos fiquem contentes com seu pedaço?

Uma carta enviada na virada do ano por Lucian Grainge, presidente e diretor-executivo da Universal Music Group, aos mais de 8 mil funcionários da holding, resumiu as preocupações não só da maior do mundo, mas das outras que formam as chamadas “big three” (Sony e Warner). Grainge fez críticas ao modelo de pagamento pro rata, utilizado atualmente pela maioria das plataformas, incluindo Spotify, Apple Music e Amazon, e levantou diversas questões sobre a sustentabilidade do negócio ante um volume de canções publicadas todos os dias que não para de crescer e já supera 100 mil.

Segundo dados obtidos pelo site Music Ally, 75% das músicas que estão no app fundado por Daniel EK pertencem às três grandes gravadoras do mercado (Sony, Warner e Universal, somadas à Merlin, que reúne diversos selos independentes). É um domínio indiscutível, mas já foi maior: em 2017, as big three repartiam 87% do chart. Desde então, não voltaram a esse patamar, e tudo leva a crer que jamais o farão.

Lucian Grainge

"O modelo econômico para streaming precisa evoluir"

Segundo Grainge, o sistema de pagamento 'pro rata' precisa ser substituído. Neste modelo, a maior parte do dinheiro de assinaturas e anúncios gerado a cada mês é agrupado em um 'pote' central, sendo então repassado às gravadoras e artistas com base no número de plays.

"A forma de remuneração que existe hoje beneficia especialmente os artistas mainstream, deixando que os artistas de gêneros mais nichados amargurem com a péssima remuneração do pool pro-rata", explica Bruno Martins, coordenador do curso de marketing musical da Escola Música & Negócios da PUC-RJ, além de fundador do selo Milk Music.

Escreve Grainge:

"O que ficou claro para nós e para tantos artistas e compositores – tanto os em desenvolvimento quanto os estabelecidos – é que o modelo econômico para  o streaming precisa evoluir. À medida que a tecnologia avança e as plataformas evoluem, não é surpreendente que haja também a necessidade de inovação do modelo de negócios para acompanhar as mudanças." 

Ele exemplifica: muitos fãs de artistas independentes pagam assinaturas mensais das plataformas de música para escutarem seus artistas favoritos, mas esse dinheiro termina por irrigar a conta daqueles que acumulam milhões de plays.

Para Anita Carvalho, diretora do Music Rio Academy e empresária artística, "se as majors como a Universal não estão satisfeitas, imagina os artistas que lutam para financiar a própria produção musical.”.

Anita Carvalho

Ela concorda com o argumento central do executivo da Universal, no entanto:

"O mercado da música gravada apresenta uma grave distorção do ponto de vista econômico. O custo da gravação dificilmente é recuperado com as receitas de execução, uma vez que sabemos que milhares de execuções rendem centavos para os artistas. No entanto, ele só existe como artista se tiver produção fonográfica. Sem isso, fica com menos força para fazer shows ao vivo, que segundo a minha pesquisa é a principal fonte de receita para artistas. Então o que acontece na prática é que o artista investe no fonográfico para recuperar com o show. Isso claramente não é sustentável, e não à toa tem sido tão discutido.”

Buscar um outro modelo, portanto, não é só demanda de uma major, mas principalmente de selos e gravadoras com muito menos poder e investimento. Mas parece que um sinal amarelo está aceso nas grandes companhias.

"As gravadoras ainda estão se reacomodando diante das transformações do mercado da música, inclusive explorando outras frentes como as receitas de shows - a própria Universal tem a GTS como braço de gestão de carreira e ao vivo. A insatisfação de Lucian, no meu ponto de vista, tem mais a ver com a perda de poder das gravadores nesse novo contexto do que exatamente os resultados do streaming, uma vez que a industria fonográfica já fatura (ancorada nessas novas receitas digitais) mais do que na época áurea dos CDs".

"A exploração injusta do modelo pro rata por empresas e produtores"

Também na mira de Grainge estão empresas e empresários que buscam explorar esse sistema ‘pro rata’ para seu próprio ganho. Ele menciona os serviços de streaming que fazem acordos diretos de royalties com empresas de produção musical e, em seguida, colocam essas músicas em playlists de destaque, numa tentativa de economizar dinheiro com royalties.

"Há um descompasso crescente entre, por um lado, a devoção dos fãs aos artistas que eles valorizam e procuram apoiar e, por outro, a forma como as assinaturas são pagas pelas plataformas. Sob o modelo atual, as contribuições de muitos artistas, bem como o engajamento de muitos fãs, são subestimados. Para atrair os consumidores a se inscreverem, as plataformas naturalmente exploram a música dos artistas que têm uma grande e apaixonada base de fãs. Depois que esses fãs se inscrevem, eles frequentemente são guiados por algoritmos para ouvirem música genérica, que não tem um contexto artístico significativo, mas que é menos cara para a plataforma licenciar. Ou, em alguns casos, que foi diretamente comissionada pela plataforma", diz Grainge.

O executivo da Universal continua:

“Por exemplo, pegue os milhares e milhares de uploads de faixas de 31 segundos de arquivos de som cujo único propósito é burlar o sistema e desviar royalties. O resultado? Uma experiência menos gratificante para o consumidor, menor remuneração fluindo para os artistas que estão conduzindo os modelos de negócios das plataformas e menos momentos culturais que os fãs podem compartilhar coletivamente, o que prejudica a criatividade e o desenvolvimento dos artistas e de suas músicas que as plataformas foram, em parte, projetadas para promover.”

LEIA MAIS: Músicas de 30 segundos, artistas fakes, fraudes e outros problemas no streaming 

Segundo Anita Carvalho, "há uma mudança no jogo de poder entre os players do mercado da música, em especial majors e independentes", e a crítica de Grainge acusa o golpe.

“Se, há duas décadas, as gravadoras majors monopolizavam a produção, divulgação e distribuição da música gravada, hoje a tecnologia permite que qualquer pessoa produza, divulgue e distribua sua música de forma autônoma. Como representante de uma major, entendo que o Lucian está reagindo a essa nova realidade. Se pensarmos do ponto de vista econômico, dentro da lógica do livre mercado, essas negociações paralelas são mais do que naturais em um sistema capitalista. De alguma forma, poder negociar direto com a plataforma permite que artistas não ligados à majors tenham acesso a outras ferramentas de promoção", observa a especialista.

"Algoritmos estão levando as pessoas a escutarem música de baixa qualidade"

O Spotify recebe mais de 100 mil músicas novas todos os dias, ou cerca de 3 milhões de faixas por mês. O tsunami de novidades não parece ser uma boa notícia nem para os fãs de música, que claramente não conseguem dar conta de tudo o que está disponível na plataforma, nem para os artistas e produtores, que veem sua matéria-prima, a música, tornar-se uma gota dentro de um oceano, segundo Grainge.

"[Com] um número tão vasto e inavegável de faixas inundando as plataformas, os consumidores estão sendo cada vez mais guiados por algoritmos para conteúdos de qualidade inferior que, em alguns casos, mal podem ser chamados de 'música'. No passado, o conflito da indústria da música era frequentemente focado em “as majors versus as independentes.” Hoje, no entanto, a verdadeira divisão é entre aqueles comprometidos em investir em artistas e desenvolvimento artístico versus aqueles comprometidos com quantidade em detrimento da qualidade. O ambiente atual atraiu pessoas que veem uma oportunidade econômica em inundar plataformas com todo tipo de conteúdo irrelevante, que priva artistas e gravadoras da compensação que merecem.”

Bruno Martins

"Precisamos de um modelo atualizado e inovador"

E qual é o caminho que Grainge propõe diante de tantos desafios? O executivo diz que a Universal está aberta a experimentar alternativas, mas dá a entender que propostas como o modelo 'centrado no usuário', defendido por muitos artistas e produtores, ou o 'alimentado por fãs', adotado pelo SoundCloud, não têm força dentro da companhia.

“[Para] corrigir [o atual sistema de pagamento de streaming], precisamos de um modelo atualizado”, escreve ele. “Não é aquele que coloca artistas de um gênero contra artistas de outro ou artistas de grandes gravadoras contra artistas indie ou DIY. Precisamos de um modelo que apoie todos os artistas - DIY, indie e major. Um modelo inovador e ‘centrado no artista’, que valorize todos os assinantes e recompense a música que eles amam. Um modelo que será uma vitória para artistas, fãs e gravadoras e, ao mesmo tempo, também aprimora a proposta de valor das próprias plataformas, acelerando o crescimento de assinantes e monetizando melhor a base de fãs.”

Há alguns dias, o Tidal anunciou que não continuará com o sistema de pagamento direto aos artistas, lançado pelo app em 2021. Segundo o CEO da empresa, Jesse Dorogusker, "conseguimos envolver 70 mil artistas e distribuímos 500 mil dólares, números muito abaixo da nossa meta". O foco da plataforma, ainda segundo Jesse, é o "Tidal Rising", que apoia artistas emergentes através da educação, promoção e o que ele chama de "pagamento direto futuro", um fundo para investimento em artistas iniciantes.

A Universal promete apresentar em breve suas sugestões para o problema, mas Grainge não entra em detalhes na carta.

“Este ano, [a UMG] estará trabalhando na inovação que é absolutamente essencial para promover um ecossistema musical mais saudável e competitivo, no qual boa música, não importa de onde seja, é fácil e claramente acessível para os fãs descobrirem e aproveitarem. Um ambiente onde a boa música não se afoga num oceano de barulho. E aquele em que os criadores de todo o conteúdo musical, seja na forma de áudio ou vídeo curto, são compensados de forma justa.”

Talvez a música precise se abrir para outros modelos de remuneração, alerta Bruno Martins: 

"Novos formatos, em alta hoje nas big techs, como assinatura de canais de conteúdo, seriam uma excelente saída para termos uma monetização ‘artist-centric’, seguindo a tendência do Instagram, Twitter, YouTube e Twitch", exemplifica.

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