Especialistas analisam as condições que permitiram a criação de álbuns clássicos e ainda atuais de Raul Seixas, Gonzaguinha, Milton e outros
Por Kamille Viola, do Rio
Raul Seixas, Milton Nascimento, Rosinha de Valença, Caetano Veloso, Tom Jobim e Secos e Molhados: seleção de 73 é rica em grandes obras. Fotos: reproduções
Em 1973, foram lançados discos de estreia de nomes que se tornariam importantes na música brasileira, como Gonzaguinha (“Luiz Gonzaga Jr.”), Luiz Melodia (“Pérola Negra”), Raul Seixas (“Krig-Ha, Bandolo!”), Raimundo Fagner (“O Último Pau de Arara — Manera Frufru, Manera”) e João Bosco (“João Bosco”), além de clássicos como o “álbum branco” de João Gilberto (que leva apenas o nome do artista), “Milagre dos Peixes”, de Milton Nascimento, e “Matita Perê”, de Tom Jobim, entre outros. Trabalhos que, 50 anos depois, seguem relevantes e atuais.
O ano foi tão profícuo de grandes álbuns que inspirou um livro: “1973 — O ano que reinventou a MPB”, de 2014 (Sonora Editora), organizado pelo jornalista Célio Albuquerque. No ano anterior, tinha acontecido a última edição do Festival Internacional da Canção (FIC), e havia quem apostasse que, sem esses eventos para impulsioná-los, os artistas brasileiros não criariam músicas à altura das que haviam marcado os anos anteriores. A “previsão”, no entanto, se mostrou equivocada.
“Sem estar apoiado na mídia do entorno dos festivais, nossa música popular solta-se do passado, sem que seja preciso se desgrudar dele, passeia por aquele momento e, ao mesmo tempo, joga potentes sementes para o futuro”, analisa Célio Albuquerque.
O jornalista Célio Albuquerque. Foto: arquivo pessoal
Para a radialista e jornalista musical Patricia Palumbo, o período entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970 foi antecedido por dois acontecimentos que impactaram muito a música que seria feita no Brasil: a bossa nova e o tropicalismo.
“Essas duas rupturas permitiram que a geração que produzia nos anos 1970 já viesse com mais liberdade para fazer misturas”, pontua ela. “Havia uma efervescência que estava acontecendo no mundo inteiro e que aqui no Brasil teve características particulares”, complementa.
O país vivia o chamado “milagre econômico”, com crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), aceleração da industrialização e inflação baixa (o legado desse período, no entanto, é bastante controverso até hoje, já, que, a despeito dos pontos positivos, foi marcado por por corrupção, aumento da desigualdade e aumento da dívida externa). O mercado fonográfico estava em crescimento, e o disco era um produto rentável, o que permitia que houvesse bastante investimento, que se refletiu em um grande número de artistas contratados e na possibilidade de mais ousadia nas gravações.
“Foi uma época de criatividade intensa, em que a música brasileira era bem tratada pela indústria fonográfica”, defende Palumbo.
A radialista e jornalista musical Patricia Palumbo. Foto: arquivo pessoal
A jornalista musical Pérola Mathias observa que esse avanço da indústria incluía uma evolução dos equipamentos disponibilizados pelas gravadoras.
“O desenvolvimento da tecnologia de gravação creio que tenha contribuído para que surgissem discos mais refinados, com novas técnicas, experimentos etc.”, afirma.
Ela também destaca que, com a escalada da repressão e da censura da ditadura militar desde o AI-5, muitos dos artistas que haviam feito sucesso nos festivais estavam exilados — entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque —, o que abriu espaço para novos nomes.
“Vimos compositores novos, como a turma do Ceará (que incluía nomes como Amelinha, Belchior, Fagner e Ednardo), os próprios Novos Baianos e outros surgirgem”, diz.
A jornalista musica Pérola Mathias. Foto: arquivo pessoal
Era um momento em que, apesar da busca pelas boas vendas, era permitido aos artistas priorizar a busca da qualidade.
“Há, em boa parte das obras do período, uma boa carpintaria. E não só para medalhões. A indústria, mesmo tendo como foco o lucro, lança no mercado produtos artísticos de assimilação difícil, como o disco ‘Ou Não’, de Walter Franco, que tinha como destaque a música ‘Cabeça’, apresentada e muuuuito vaiada no FIC 72”, exemplifica Célio Albuquerque, cujo livro inspirou uma série que está sendo reprisada no Canal Brasil: "MPB 73: O Ano da Reinivenção", com 13 episódios, direção artística de João Faissal e roteiro e direção de conteúdo do próprio Albuquerque.
O por ele mencionado álbum "Cabeça", assim como o também experimental “Araçá Azul”, de Caetano Veloso, do mesmo ano, tiveram pouca aceitação do público e chegaram a ser devolvidos nas lojas. Hoje, ambos são cultuados.
Um dos trabalhos mais emblemáticos de 1973 é o álbum de estreia do grupo Secos & Molhados, que tinha Ney Matogrosso no vocal. O LP vendeu 800 mil cópias, com várias das músicas apresentadas nele se tornando sucessos, e a banda virando um fenômeno. Outro disco marcante é “Krig-Ha, Bandolo!”, primeiro álbum solo de Raul Seixas (na verdade, ele já havia gravado o LP de covers “Os 24 Maiores Sucessos da Era do Rock”, mas o disco havia sido creditado a uma banda fictícia, Rock Generation). No trabalho, estão clássicos da carreira de Raul, como “Metamorfose Ambulante”, “Mosca na Sopa”, “Al Capone” e “Ouro de Tolo”.
Outro destaque da leva de 1973 é “Milagre dos Peixes”, de Milton Nascimento. O disco teve as letras de oito das 11 faixas censuradas. Milton decidiu, então, gravar todas as músicas apenas com vocalizes, buscando passar a emoção das letras vetadas. Acabou se tornando um de seus álbuns mais emblemáticos.
Também foi afetado pela censura “Chico Canta”, originalmente “Chico Canta Calabar”, trilha da peça “Calabar: O Elogio da Traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra”. O título foi vetado por formar a sigla CCC, considerada alusão ao Comando de Caça aos Comunistas. O nome Calabar foi proibido de ser mencionado, pois, segundo eles, evocava traição (a peça narrava a saga de Domingos Fernandes Calabar, que aliou-se aos holandeses contra os portugueses quando os primeiros invadiram o Nordeste do Brasil). Uma música teve a letra censurada, e outras tiveram versos suprimidos ou trocados.
Patricia Palumbo chama atenção para dois outros discos do período: “Nelson Cavaquinho”, que marca o retorno do artista ao instrumento e tem clássicos como “Folhas Secas” e “Juízo Final”, e “Rosinha de Valença”, disco homônimo da cantora, compositora e exímia violonista. Já Pérola Mathias aponta para dois trabalhos que frequentemente são esquecidos quando se fala nos álbuns do período. O primeiro é “Apresentamos Nosso Cassiano”.
“Acho que Cassiano sempre mereceu maior atenção do que teve, tanto em vida, quanto agora, depois de seu falecimento em 2021”, diz.
O outro é “Samba da Bahia”, de Riachão, Batatinha e Panela.
“São três compositores sensacionais e que foram regravados, por exemplo, por Gilberto Gil e Maria Bethânia, mas seguem pouco conhecidos”, pontua.
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