Conheça a história da interpolação que mudou o rumo de uma canção de Sullivan e Massadas e relembre mais casos de músicas com várias versões
Por Kamille Viola, do Rio
Os personagens Ben e Sol dançam ao som de 'Garota Nota 100' em cena de 'Vai na Fé': nova versão de uma interpolação de êxito. Foto: Globo
Na atual novela das sete da TV Globo, a bem-sucedida “Vai Na Fé”, uma música se destaca tanto que, mais do que integrar a trilha sonora da trama, se tornou parte da história. A canção é “Garota Nota 100”, que marcou a trajetória comum dos protagonistas Sol (Sheron Menezes) e Ben (Samuel de Assis). Gravada em versão R&B por Ludmilla especialmente para o folhetim, a música tem um percurso bem mais longo do que poderia parecer à primeira vista.
Em 1987, a cantora Patrícia Marx (então só Patrícia), do grupo infantil Trem da Alegria, estava entrando na adolescência e lançou seu primeiro álbum solo. Produzido por Michael Sullivan, também criador do Trem da Alegria, o disco tinha como uma de suas faixas a balada “Te Cuida Meu Bem” — composição de Sullivan e do parceiro Paulo Massadas. Foi um estouro. Corta para 1997, quando Sullivan recebeu um telefonema do funkeiro MC Marcinho, que havia criado outra letra para a música cantada por Patricia. A versão estava indo bem nos bailes, e o artista queria lançá-la num álbum. Sullivan e Massadas deram o OK, e a agora rebatizada “Garota Nota 100”, assinada pelos três, também virou hit.
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A faixa é um caso de interpolação, quando você usa uma melodia (ou partes dela) com uma nova letra. É diferente do sample, em que, para usar trechos da gravação original, é preciso permissão do produtor fonográfico e também do autor/editor. Com a interpolação, só é necessária a permissão do compositor. Sullivan, por exemplo, viu com bons olhos a ideia.
“Acho que ficaram dois clássicos numa melodia só (risos)”, diverte-se.
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O jornalista musical Pedro Só lembra que essa está longe de ser uma prática nova: trata-se de um recurso, na verdade, muito antigo.
“Deve vir de antes, mas na Idade Média já era comum você ter uma mesma melodia acomodando diferentes letras e variações de letras, quando também não havia a questão da autoria, da individualidade de um autor numa obra artística. É muito comum em coisas do folclore, do que é tradicional, e a gente tem aqui no Brasil isso dentro de formatos como, por exemplo, samba, partido-alto”, exemplifica.
Um caso notório de interpolação na MPB são as diferentes versões da música “O Que Será”, de Chico Buarque. “O Que Será (À Flor da Terra)” foi gravada no disco “Meus Caros Amigos” (1976), de Chico, em dueto com Milton, e censurada pela ditadura militar. “O Que Será (À Flor da Pele)” foi registrada pelos dois no álbum “Geraes”, de Milton. E uma terceira versão, semelhante à primeira, “O Que Será (Abertura)”, foi gravada por Simone para a trilha do filme “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, de Bruno Barreto, com alusões à história do filme na primeira parte da letra.
Outra interpolação bastante conhecida é a da música “Don’t Cry”, do grupo Guns N’ Roses, lançada em 1991, que tem duas versões, com letras distintas: a mais conhecida, que ganhou clipe, está no álbum “Use Your Illusion I”, e a versão alternativa está em “Use Your Illusion II”. A primeira é baseada numa situação que o vocalista Axl Rose viveu: ele se interessou por uma ex do guitarrista Izzy Stradlin, mas ela não quis ficar com ele. Já a segunda também fala sobre um relacionamento que não deu certo, mas não se sabe se é um outro ponto de vista da mesma história ou se ele se refere a outra mulher.
O single “Holiday Rap”, da dupla holandesa MC Miker G & DJ Sven, de 1986, traz duas interpolações. A principal é a de “Holiday”, de Madonna, de 1983. O DJ Martin van der Schagt registrou em seu estúdio caseiro uma versão demo de “Holiday Rap” usando loops da gravação original. Como não conseguiu autorização para lançar a faixa comercialmente, em vez de samplear Madonna, o produtor Ben Liebrand regravou a música do zero e fez uma letra diferente. A segunda interpolação na faixa é do refrão de “Summer Holiday”, sucesso de Cliff Richard.
No funk, o recurso é bastante comum, geralmente com letras pornográficas. Um exemplo mais recente é “Era Uma Vez”, de Kell Smith, que ganhou mensagem apimentada de MC Cabelinho. Outra versão bastante conhecida é “Depois do Prazer”, do Só Pra Contrariar, que virou “Tô Fazendo Amor Com a Favela Toda” na voz de MC Jessica. O próprio MC Marcinho já se aventurou nessa vertente, transformando “Detalhes”, de Roberto Carlos, no “Rap do Cabeludo”.
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Reciclar algo que já está no inconsciente do público é uma prática recorrente da indústria musical: que o diga a profusão de covers e de bases sampleadas. Se a melodia virou hit a primeira vez, tentar emplacar mais uma não seria de se estranhar, porque nosso cérebro gosta daquilo que já conhece.
“É uma coisa da indústria hoje em dia, que é você se aproveitar do que já está no inconsciente popular. Uma música que foi muito forte obviamente já encontra ressonância. É muito mais fácil”, pondera Pedro Só.
É o mesmo caso das melodias-chiclete: elas são facilmente assimiladas pelo ouvinte, que, então, passa a querer escutá-las novamente.
“Tem essa questão do reconhecimento: quando você ouve uma melodia simples, mas marcante, o seu cérebro busca aquilo de novo. Existem questões neurológicas envolvidas. E existe quem sabe fazer isso, como o mestre que é o Michael Sullivan”, analisa o jornalista.
Sullivan, por sua vez, celebra seu tino para o sucesso.
“Tudo em que a gente está junto acontece (risos)”, diz.
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