De Rita Lee a Michael Jackson, astros têm seus timbres reproduzidos por softwares e publicados na internet; advogado especialista comenta
De São Paulo
Uma das maiores vozes do rock brasileiro, a da grande Rita Lee, já tem seu próprio modelo digital. Foi criado por seu filho João Lee, que explicou todo o processo esta semana em suas redes sociais. Ele contou ter pego 50 canções dos pais, Rita e Roberto de Carvalho, isolado os solos vocais da mãe e mapeado seu timbre vocal. Nascia assim um padrão que poderia ser usado para fazer parecer que Rita fala ou canta qualquer coisa.
“Nunca faria um AI (inteligência artificial na sigla em inglês) da minha mãe para lançar música com ela cantando de mentira. Isso não vai acontecer, gente. Nem nunca o AI será público. Mas a tecnologia impressiona”, assegurou João, que parece ter realizado o experimento só para guardar a voz da mãe sempre perto de si.
Não é o caso, porém, das muitas imitações de vozes de grandes astros que vêm pipocando em plataformas como TikTok e YouTube. Michael Jackson cantando “Blinding Lights”, do cantor e compositor canadense The Weeknd; Freddie Mercury cantando "Thriller", de Michael Jackson; Frank Sinatra fazendo cover de “Levitating”, da cantora e compositora inglesa Dua Lipa; Amy Winehouse, Kurt Cobain e Jimi Hendrix em performances de canções inéditas escritas por IA e interpretadas por suas vozes digitalmente recriadas... Tem de tudo. Até artistas vivos, como Ariana Grande, entraram (sem seu consentimento, claro) na moda do momento: a voz fake da americana faz dueto com Mastruz Com Leite numa versão da canção “São João na Terra”, com milhares de visualizações no YouTube.
O público se diverte, os criadores das imitações faturam com os anúncios dos vídeos que publicam. Mas também há implicações indesejadas para os titulares de direitos autorais.
“O assunto é superdelicado. Não há previsão em relação isso nas atuais leis. E o que não é proibido se pode fazer”, diz Claudio Lins de Vasconcelos, advogado especialista no tema. “Uma coisa é o que se vinha fazendo até agora: utilizar a imagem real, do passado, de uma pessoa... Sua foto, seu nome. Outra é construir um personagem e colocar palavras na boca dele, criar músicas que ele nunca cantou – e que talvez não cantasse se estivesse vivo. Cabe aos herdeiros controlar. Tem gente como o (ator americano) Tom Hanks que já entendeu isso. Recentemente, ele anunciou que incluiu em testamento a permissão para que os filhos explorem sua imagem futuramente em filmes. Muita gente vai ganhar dinheiro com coisas assim.”
Alguns de fato já estão ganhando. Esta semana, a plataforma americana Kits.Ai, lançada há cerca de dois meses, anunciou ter alcançado um milhão de conversões vocais feitas por muitos dos seus cem mil assinantes. Traduzindo: um milhão de vozes tiveram seus padrões capturados para ganhar novos usos independentemente dos seus donos. O que diferencia esta das outras muitas ferramentas que mapeiam e isolam o timbre de pessoas famosas é o fato de ser apoiada por pesos-pesados da música internacional, como o DJ Steve Aoki e o cantor e compositor Lionel Richie. E esses artistas só o fazem porque a plataforma alega licenciar cada transformação vocal, pagando royalties aos donos das vozes ou seus herdeiros.
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Segundo o Kits.Ai, como muitos dos que tiveram suas vozes capturadas estão vivos, um dos usos possíveis da ferramenta é permitir que artistas possam gravar músicas novas sem nem mesmo precisar pisar num estúdio. “Todo o processo permite aos artistas reter o controle sobre o uso comercial das suas vozes, ao mesmo tempo em que recebem pagamentos por isso”, diz a plataforma em comunicado.
O Kits.Ai é uma tentativa de resposta dentro da lei a uma onda de falsificações de vozes que não só tomou o TikTok e o YouTube; também chegou até às plataformas de streaming. Como mostramos anteriormente no site da UBC, em abril o rapper americano Drake, além do já mencionado The Weeknd e da Universal Music, denunciaram a música viral “Heart on My Sleeve”, subida a apps como Spotify, Apple Music e YouTube. A música usou inteligência artificial para copiar, sem autorização, o estilo de composição dos artistas e imitar perfeitamente os vocais deles, infringindo seus direitos autorais e também conexos.
"O recente desenvolvimento explosivo em IA generativa, se não for controlado, aumentará o fluxo de conteúdo indesejado hospedado em plataformas de streaming e criará problemas com as leis de proteção de direitos autorais no mundo todo. É preciso agir, e agir já”, disse na época Lucian Grainge, presidente mundial da Universal, companhia que vem empreendendo uma guerra contra o uso de canções do seu catálogo para gerar outras artificialmente.
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A reclamação foi um ponto de mudança para algumas plataformas de streaming, que não só derrubaram a faixa como anunciaram mecanismos para bloquear novos uploads semelhantes. Um panorama que poderia mudar, caso outros softwares como o Kits.Ai, com música licenciada pelos próprios donos das vozes ou por seus herdeiros, se multipliquem.
“Podemos imaginar um cenário em que álbuns inteiros dos Beatles sejam lançados, com as vozes de John Lennon e dos outros. Vai ter a qualidade artística dos Beatles originais? Claro que não, duvido muito. O problema é que o mercado aceitará, mesmo que por um tempo”, diz Lins de Vasconcelos. “O fundamental é encontrar uma forma de identificar claramente o que é IA e o que não é. No longo prazo, as leis precisarão se adaptar para garantir essa identificação. Se o público souber que se trata de IA, não vejo problema. Se não souber, muitos abusos podem ser cometidos, inclusive para além da música. Usos de discursos falsos na política, golpes, várias situações negativas poderiam ocorrer. A tecnologia está aí e vai se expandir. Mas transparência é fundamental. É a palavra-chave.”
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