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Algoritmos de recomendação: como não amá-los?
Publicado em 05/10/2023

Clemente Magalhães, produtor musical, consultor de marketing digital e diretor de A&R na Corredor 5, assina o artigo de hoje no site da UBC

O uso de algoritmos de recomendação nas plataformas de streaming é um tema tão polêmico quanto pouco conhecido em detalhes, mesmo entre especialistas no mercado musical. Embora muitos defendam que houve uma democratização sem precedentes no acesso à música nova com a difusão dessa tecnologia de inteligência artificial — baseada num complexo sistema de classificação de usuários para sugerir a música "certa" à pessoa "certa" —, também são vários os críticos do método, por verem um enviesamento nos algoritmos, que, controlados pelas big techs, utilizariam critérios econômicos nas recomendações e manteriam as pessoas em suas "bolhas", sem oferecer de fato novidades.

Na segunda-feira (2), Dani Ribas, doutora em sociologia com tese e trabalhos sobre os algoritmos, abriu o debate aqui no site da UBC. Na terça (3), foi a vez de Luiz Eduardo Garcia, empresário e consultor com ampla experiência no mercado musical, tanto do lado das gravadoras como das plataformas digitais. Na quarta (4), quem assinou um artigo sobre o tema foi Dani Faria, empresária musical responsável pelo selo Urban Pop e sócia de Kamilla Fialho na K2L Empresariamento Artístico. Nesta quinta (5), o articulista é Clemente Magalhães, produtor musical, consultor de marketing digital, criador de conteúdo e diretor de A&R na Corredor 5 Music Lab.

Algoritmos de recomendação: como não amá-los?

Por Clemente Magalhães, do Rio

Clemente no estúdio onde grava seu podcast, Papo Com Clê. Reprodução

Era inverno de 1998, e lembro-me claramente do telefone tocando em nossa casa em Moema, São Paulo. Eu e meus companheiros de banda estávamos prestes a voltar para o Rio de Janeiro, após um ano de tentativas frustradas de construir uma carreira de sucesso lá. Corri para atender o telefone, achando que poderia ser algo relacionado a trabalho, mas quem estava do outro lado da linha era Erasmo Carlos. Ele perguntou se o Gugu, seu filho e cantor da minha banda, estava em casa. Respondi que não, ele começou a perguntar se estávamos bem, e aproveitei a oportunidade para desabafar. Ele me esperou terminar e, com sua típica simplicidade, me deu uma das maiores lições de vida que já havia recebido até então. 

Ouvi-o, maravilhado, comparar o sucesso a uma festa com bebidas grátis e belas mulheres: você pode ser o anfitrião, um convidado, ou sua única chance é ser o mais persistente e cativante da turma do alambrado:

"Bicho, você tem que ficar ali até que alguém abra a porta para você, mesmo que seja no final da festa."

Eu, com tantos privilégios, sabia muito bem onde era a festa e como chegar lá, mas, como 99% dos artistas da minha época, nunca consegui entrar. Nem vou mencionar as milhares de pessoas que nunca tiveram a oportunidade de gravar uma fita demo e enviá-la para aqueles poucos indivíduos que, como deuses, decidiam quem seria artista ou não. 

Minha banda possivelmente não merecia estar na festa, mas fico pensando em quantos talentos maravilhosos desistiram de seus sonhos à medida que as portas se fechavam. Era triste quando um artista ouvia um “não” de todas as gravadoras e percebia que dificilmente teria outra oportunidade.

Para aqueles artistas dentro das grandes gravadoras, aproveitando as facilidades de um poderoso mecanismo promocional baseado na compra ilegal de exposição em rádios – o famoso "jabá" – e a onipresença na Globo, essa era uma época muito melhor.

E agora estamos em 2023! 

Após renascer das cinzas pós-Napster e testemunhar o "milagre" chamado Spotify, temos uma indústria musical novamente rica e muito mais inclusiva. 

A tal festa de arromba, antes exclusiva, fragmentou-se a tal ponto que praticamente qualquer um pode lançar uma música, liderar uma comunidade, ganhar dinheiro e transformar a vida de sua família. 

O livro "A Cauda Longa" já previa um ecossistema online extremamente democrático, com prateleiras infinitas onde todos poderiam vender algum produto, mesmo que fosse apenas uma cópia. 

A acessibilidade e a significativa redução dos custos de produção e distribuição permitiram que qualquer pessoa tivesse a oportunidade de se lançar como artista. Não me surpreende que 80% das 100.000 músicas lançadas no Spotify nos EUA diariamente não recebam nenhum play. 

De repente todo mundo resolveu ser artista e influenciador digital! 

Nessa seara maluca, há aqueles que lançam músicas por hobby ou diversão, outros sem talento algum, e uma minoria comprometida que genuinamente quer fazer da música sua profissão, dedicando-se integralmente a essa paixão.

Democratizou geral! 

Ainda assim, é surpreendente ver pessoas demonizando o modelo de streaming do Spotify, frequentemente sem entender totalmente como ele funciona. Por isso darei uma pausa na prosa para explicar como funciona a verdadeira estrela deste show: o Motor de Recomendação do Spotify. Este motor é construído com base em três métodos de aprendizado de máquina:

1. Filtragem Colaborativa

Imagine que o Spotify tem uma grande tabela com muitas linhas e colunas. Nas linhas, temos os IDs dos usuários e nas colunas, os IDs das músicas. Se um usuário ouvir uma música, o número 1 aparece na interseção da linha desse usuário e coluna da música. Se não ouvir, aparece 0. Essa tabela ajuda a entender o gosto de cada pessoa e o que cada música oferece.

Aí vem a parte legal: o Spotify usa uma técnica complicada chamada "fatoração de matriz" para criar um tipo especial de "números" para cada música e usuário. Esses números descrevem como as músicas e os usuários se conectam. Assim, o Spotify coloca todas as músicas e usuários em um "espaço imaginário".

Aqui está a sacada: o Spotify consegue ver quais músicas e usuários estão próximos nesse espaço. Se uma música que você ainda não ouviu estiver bem perto de músicas de que você gosta, o Spotify acha que você pode curtir essa nova música também. O mesmo acontece com os usuários: se alguém parecido com você gosta de uma música, o Spotify pensa que você pode gostar também.

2. Processamento de Linguagem Natural (blogs, metadados e listas de reprodução)

O Spotify analisa palavras usadas em blogs, metadados e listas de reprodução para entender melhor as músicas e artistas. O Spotify cria perfis de músicas com base em palavras e os coloca em um espaço imaginário para entender suas relações. Ele faz o mesmo com listas de músicas, analisando quais músicas aparecem juntas em várias listas populares, usando essas informações para recomendar músicas novas para você.

3. Dados de Áudio (Processamento e Análise de Sinais)

O terceiro método se baseia em dados de áudio, onde o Spotify "ouve" as músicas para entendê-las melhor. Essa análise é complementada com informações sobre como as pessoas reagem à música.

Agora, tem um problema: músicas que acabaram de ser lançadas ainda não têm muitos dados para o Spotify entender o que são. Mas aí entra a mágica do "espectrograma". O Spotify usa toda a sua inteligência para olhar para esses mapas e descobrir coisas como a melodia, o ritmo e até o "clima" da música. Ele cria um perfil superdetalhado para cada música. E o legal é que, mesmo que ninguém tenha ouvido a música antes, o Spotify pode colocá-la no seu "mapa musical imaginário".

Agora, tem um truque: entender como a música soa resolve uma parte do problema, mas não diz se a música é boa de verdade. Isso ainda depende de quantas vezes as pessoas ouvem a música e do que falam sobre ela. Então, o Spotify mistura essas coisas todas para saber quais músicas te sugerir.

Ah, e se um artista manda uma música para o Spotify antes de lançar, eles usam esses "mapas sonoros" para saber qual usuário vai gostar da música nova. Mas isso leva um tempinho… Por isso sempre sugiro que façam o seu pitching com pelo menos um mês de antecedência.

 

Não sei se ficou mais nítido como todo esse sistema funciona, mas o fato é que isso trouxe à tona artistas que jamais teriam chances no mercado tradicional. O mecanismo de recomendação do Spotify tornou-se a curadoria de grande parte dos amantes de música. 

Se eu me apaixonar hoje pelo Rubel, esse algoritmo terá que me mostrar mais "Rubels" e, assim, outros artistas que seguem os mesmos critérios vão aparecer para mim. O próprio Rubel me apareceu numa playlist criada a partir do Silva, que por sua vez eu descobri depois de criar uma rádio baseada no Tiago Iorc. Isso acontece todos os dias em todos os lugares com milhares de artistas, e nessa espiral é onde a mágica acontece. 

Um outro fator que é raramente falado nas rodinhas elitizadas que demonizam o Spotify é como a plataforma democratizou o acesso a música para as camadas mais pobres da sociedade. Hoje, qualquer um que tenha um celular e acesso a internet pode escutar o mesmo catálogo que alguém de uma situação financeira mais privilegiada. Vale a pena refrescar a memória de cada um que me lê aqui: até a entrada do modelo freemium do Spotify, ter um enorme acervo de discos em casa era coisa de gente muito rica. 

Qual o impacto direto dessa inclusão fantástica no consumo de música? 

Uma revolução nos top charts, com gêneros como funk, hip hop, trap, forró e sertanejo tomando o lugar de outros segmentos mais elitizados. Isso aconteceu não apenas no Brasil, mas também nos EUA, com a música latina conquistando os top charts. E o mais fascinante para mim: muitos desses fonogramas que ocupam as primeiras posições foram produzidos em home studios superprecários, de forma caseira, às vezes até mesmo em um celular. 

Por conta dessa dinâmica, temos hoje infinitamente mais gente vivendo da música do que há 30 anos. Um exemplo disso é o surgimento de um mercado que não existia até então: o midstream. Esse mercado digital permitiu que indivíduos periféricos, que dificilmente teriam espaço em empresas multinacionais, construíssem impérios independentes e muito bem-sucedidos, sem nenhum recurso inicial. Empresas como GR6, Kondzilla e muitas outras explodiram inúmeros artistas desde seu surgimento, movimentam milhões de reais anualmente e geram empregos diretos e indiretos. 

Vejo o trabalho que o Pablo Bispo faz nas periferias, dando voz para dezenas de artistas que não tiveram acesso a nada e me emociono. Como eu posso ser contra algoritmos que causaram tamanha revolução no mercado? 

Sou criador de conteúdo, produtor musical e consultor de marketing. Minha missão é capacitar artistas e profissionais da indústria musical por meio de informações práticas e relevantes, sem nenhum viés político. Por isso, fico muito triste ao ver artistas independentes adotando uma mentalidade derrotista, olhando pro mercado através de uma lente pra lá de distorcida e repetindo o que essas pessoas dizem.  

Mas, claro, essa nova era musical exige mais dos artistas. 

Estamos diante de um novo mercado que exige dos artistas um drive bizarro de trabalho, um ímpeto empreendedor, algo que nem todos têm por natureza. Eu entendo a dor de cada um aqui quando olha para todo esse novo mecanismo e não sabe nem por onde começar. Também já fui artista e sei como tudo isso mexe com a gente. Somos pessoas sensíveis, olhamos para tudo de uma forma mais lúdica e não fomos preparados para esse mercado digital. 

Os artistas podem culpar o Spotify por falta de habilidade, motivação, sorte ou talento, mas a verdade é que fazer sucesso será sempre uma exceção. Temos que gerenciar nossas expectativas e frustrações, até mesmo para saber se é isso mesmo que queremos para nossa vida e saber a hora de sair. Muitos querem viver de música, embora nem todo mundo tenha vocação e estômago para essa profissão. É uma nova carreira, um novo ofício, e afirmo: qualquer coisa que surja em uma possível era pós-streaming exigirá ainda mais dos artistas. Isso não tem retorno. Uma possível internet descentralizada trará desafios ainda maiores para quem quiser construir uma carreira.  

Aí vem a turma da ladainha dizer que o Spotify está fazendo jabá... Dá vontade de rir! 

O Spotify é uma empresa de tecnologia que paga 70% do que fatura para os detentores dos direitos do catálogo e tem o direito de vender publicidade em sua plataforma. Se algumas marcas podem comprar espaço de mídia ali, por que nós artistas não podemos anunciar também? Eu amo a forma como a empresa está evoluindo seu modelo de anúncios. Será mais uma ferramenta superútil para nós nos próximos anos. 

Quando você anuncia no Instagram, no Google, no Facebook ou no TikTok, é jabá? Rádio é concessão pública, e por isso o jabá é ilegal. A indústria deu seu jeito de fingir que está comprando espaço de mídia, todos fingem que não estão vendo, e fica tudo certo. Estamos vivendo a maior revolução tecnológica da história, e existem muitas oportunidades para quem estiver aberto a entender como tudo isso funciona. 

Eu mesmo, aos 47 anos, tomei uma decisão que mudou minha vida e a vida das pessoas próximas a mim: abrir um canal no YouTube. O crescimento do meu canal, que hoje tem quase 280.000 assinantes e uma média de seis milhões de visualizações a cada 28 dias, é fruto do trabalho da nossa equipe, mas essa revolução não teria acontecido na minha vida se não fosse o tal algoritmo de recomendação do YouTube, somado aos algoritmos de Instagram, Facebook, Tiktok e Spotify. 

Poucas vezes na vida temos uma segunda chance de nos posicionar profissionalmente, e devo a essas plataformas e seus algoritmos parte dessa conquista. As ferramentas estão aí de forma gratuita para você construir sua audiência. Está esperando o quê? 

LEIA MAIS: Corredor 5 estreia podcast em homenagem aos 80 anos da UBC

 

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