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Algoritmos de recomendação: por que não olhá-los com lentes do passado
Publicado em 03/10/2023

Luiz Eduardo Garcia, consultor de negócios musicais e ex-gerente de desenvolvimento na Meta (Facebook), continua o debate no site da UBC

O uso de algoritmos de recomendação nas plataformas de streaming é um tema tão polêmico quanto pouco conhecido em detalhes, mesmo entre especialistas no mercado musical. Embora muitos defendam que houve uma democratização sem precedentes no acesso à música nova com a difusão dessa tecnologia de inteligência artificial — baseada num complexo sistema de classificação de usuários para sugerir a música "certa" à pessoa "certa" —, também são vários os críticos do método, por verem um enviesamento nos algoritmos, que, controlados pelas big techs, utilizariam critérios econômicos nas recomendações e manteriam as pessoas em suas "bolhas", sem oferecer de fato novidades.

Na segunda-feira (2), Dani Ribas, doutora em sociologia pela Unicamp com tese e trabalhos sobre os algoritmos, abriu, aqui no site da UBC, um debate que ocupará toda a semana. Nesta terça (3), quem continua é Luiz Eduardo Garcia, consultor de estratégia de negócios e executivo com ampla experiência em contratos globais de licenciamento musical, monetização de música digital e parcerias entre gravadoras e plataformas.

Algoritmos de recomendação: por que não olhá-los com lentes do passado

Por Luiz Eduardo Garcia, de Nova York*

A recomendação de conteúdo está por toda parte, não só na música. Os algorítmos têm diversas funções importantes, aprender como eles funcionam de forma geral e buscar caminhos para tirar proveito deles é fundamental na dinâmica atual do mercado de conteúdo. Não temos um modelo perfeito atualmente, mas acredito que nunca tivemos e, talvez, nunca o teremos. A sensação pode ser de total falta de controle no jogo, mas aprender como ele funciona e como jogá-lo é mais importante do que procurar culpados ou achar que mundo se adaptará para atender aos seus interesses (pode acontecer, mas é muito raro). Claro que devemos analisar, criticar e busca melhorias constantemente.

Uma questão de escolha

Imagine um programa infantil repleto de crianças na plateia, e a grande atração do momento é uma música estrangeira sobre partes íntimas. Esse programa detinha uma audiência de dezenas de milhões de pessoas assistindo em tempo real, logo era capaz de influenciar o consumo de música dos telespectadores. Parece polêmico, mas isso aconteceu nos anos 90.

De forma menos polêmica, a música de abertura da novela foi sinônimo de sucesso absoluto de várias décadas. O mercado musical, assim como o mercado de conteúdo de forma geral, estava adaptado ao cenário daquele momento temporal, com equipes, processos e produtos voltados para alcançar tais espaços de destaque na TV, no rádio e na mídia impressa, para atingir os objetivos dos negócios e das carreiras artísticas. 

Dar alguns passos para atrás, ou para o passado, ajuda a colocar as coisas em perspectiva. As dinâmicas de promoção musical estavam de acordo com as possibilidades do momento. Sem dúvida, não se tratava de um modelo perfeito, mas era o modelo clássico da comunicação onde um emissor ativo dissemina uma mensagem para a massa que passivamente consome tal conteúdo. Claramente vivemos um outro momento e, para analisar o momento atual, precisamos entender que carregamos vieses do passado. 

Muitos dos profissionais do mercado (me incluo nessa) aprenderam a consumir conteúdo nos anos 80 e 90, começaram no mercado de trabalho e aprenderam com profissionais mais velhos, que tiveram uma experiência em um cenário de mídia e conteúdo muito diferente do atual. Precisamos evitar olhar o momento presente com as lentes do passado. Talvez, em 10 ou 15 anos, um "Gen Z" contará que achava a discussão sobre algoritmos um tanto quanto engraçada ao escrever para a Revista da UBC, depois de estar em uma posição de destaque no mercado ou nos charts. Tal profissional já atua de forma muito diferente ao criar/produzir, distribuir, promover e monetizar conteúdo no mercado atual de forma "nativa". 

A quebra da questão temporal que nos possibilita consumir sob demanda o conteúdo que quisermos, em conjunto com a remoção de diversas barreiras de entrada para produção e distribuição de conteúdo, nos coloca em uma momento de abundância. Antigamente, as opções eram infinitamente menores, desde o lado da produção e distribuição até mesmo o do consumidor. Atualmente, os produtores de conteúdo contam com diferentes formas de encontrar e desenvolver audiências ao distribuir seu produtos em diferentes formatos via diferentes plataformas. Hoje, virtualmente todos podem ser produtores de conteúdo e disseminadores de mensagem, e existem milhões de "nichos" de milhões de pessoas conectadas por alguns interesses em comum. Isso muda tudo, os algoritmos de recomendação são efeito, mas também causa da aceleração dessa transformação. 

O Netflix Prize, em 2009, foi um dos marcos temporais dos algoritmos de recomendação de conteúdo. A empresa criou um prêmio para encontrar o melhor algoritmo de "filtro colaborativo" e melhorar sua recomendação de conteúdo, e essa é uma das tecnologias mais presentes em ferramentas de recomendação por aí. Naquele momento, a empresa enfrentava a competição de gigantes como a Blockbuster, que reagiu lançando a oferta "Total Access", permitindo aos assinantes alugar filmes de casa através da web e trocá-los nas lojas físicas, algo que estava incomodando a Netflix. Hoje sabemos quem ganhou essa briga e como, mas naquela época não era tão claro que a recomendação de conteúdo era um  dos produtos principais da Netflix junto à conveniência, sendo que a necessidade de recomendar o melhor filme para cada cliente nasceu também por conta do menor sortimento de títulos e da falta de espaço para estocar DVDs. Virou o principal diferencial da empresa até a introdução das produções originais, com o lançamento de “House of Cards”, em 2013.

Vale lembrar que a Netflix só começou a focar em streaming como seu principal produto em 2011. A partir daí, o vasto conhecimento que a empresa adquiriu através da análise de dados também serviu para definir em quais produtos investir e em quais formatos eles deveriam ser lançados. 

Onde estão os algoritmos? 

Olhando para a música, vale pensar sobre onde a recomendação de conteúdo está presente, e vale também recordar que as pessoas consomem música de formas diferentes em ocasiões diferentes, mesmo quando usam um mesmo app. No streaming, por exemplo, as ferramentas de recomendação podem estar presentes desde o início da jornada do usuário para ajudar a povoar a "home", destacando conteúdos recomendados através de dicas iniciais sobre gêneros e artistas passados pelos usuário no formato “Tinder”. Isso foi usado pela Deezer e  pela Apple Music nos idos de 2014/2015. No fim de 2015, o Spotify lançou as playlists Discover Weekly, que se tornaram parte do dia a dia de centenas milhões de pessoas. O ponto de partida foi justamente as músicas consumidas por cada uma e por todas essas centenas de milhões de pessoas. Ambos exemplos estão aqui para mostrar que os usuários são parte do processo, nada acontece randomicamente e por acaso.

Recomendações também ocorrem para lhe apresentar novos artistas pelos quais você pode se interessar através de destaques, playlists ou rádios baseadas no seu histórico de consumo — ou no histórico de outros usuários com interesses semelhantes (quem usa ou usava o Flow da Deezer?). Elas também aparecem após você dar play ao buscar uma música (ou ao final de uma playlist que você criou) e deixar o app continuar através do autoplay. Às vezes, criando experiências deliciosamente nostálgicas. Mais recentemente, o Spotify anunciou a nova home de música e o novo DJ baseado em AI, mostrando que a recomendação via algoritmo está ganhando ainda mais força no app. 

Qualquer experiência personalizada de conteúdo está baseada em algoritmos, sua home do YouTube, o feed de Instagram/Facebook e TikTok… Todos eles analisam o conteúdo criado, postado e consumido de forma individual e agrupada em bilhões de grupos e subgrupos com milhões de pessoas, para recomendar a experiência mais cativante para cada usuário. Nos casos das redes sociais, onde música é cada vez mais usada como forma de expressão, assim fazendo parte do mix promocional para artistas, existe também a transição da recomendação de conteúdos da audiência conectada para não-conectada. A primeira era baseada em quem segue quem, já a segunda é baseada em quem se interessa em quem ou em quê, abrindo novas possibilidades para todos. 

Se aprofundar no tema de forma pragmática é fundamental, visto que a recomendação de conteúdo estará cada vez mais presente, principalmente quando nossa interface com a tecnologia passar a ser mais conversacional (ChatGPT + Assistentes de Voz). Da mesma forma que precisamos nos conscientizar dos nossos vieses do passado ao analisar algo presente, questionar os vieses dos algoritmos é um ponto fundamental dessa discussão. 

Gravadoras/Distribuidoras, artistas e plataformas estão em constante iteração desse modelo, buscando evitar distorções e garantir mais justiça para os criadores. Da mesma forma, precisamos lembrar que os usuários hoje têm mais voz do que nunca tiveram (tinham quase zero no modelo centralizado) e são a parte mais importante da equação.

Assumir que os algoritmos estão impedindo o surgimento de novos artistas ou limitando o desenvolvimento de carreiras é perigoso e, talvez, seja uma opinião não embasada em dados reais, principalmente se considerarmos a escala do consumo de música e conteúdo dos mais de cinco billhões de pessoas conectadas à internet. Em raros momentos da indústria vimos tantos novos artistas atingindo posições de destaque no mercado, nunca tivemos um mercado independente tão forte quanto agora, algo extremamente positivo para todos os players do mercado. Claro, não existe fórmula para o sucesso, mas antes também era complicado. Porém, ficou ainda mais difícil para quem estava acostumado com o modelo do programa de TV de domingo ou da blitz de rádio garantindo os primeiros lugares nas paradas.

Algoritmos viraram importantes colegas dos editores, ampliando a capacidade de conhecer e avaliar novas músicas, uma vez que é impossível criar uma operação capaz de avaliar o conteúdo produzido e distribuído diariamente. Mas, ao mesmo tempo, estão descentralizando o papel de "gatekeeper", assim dando ainda mais acesso aos espaços para mais criadores. Mesmo que de forma imperfeita, isso representa um mercado mais democrático do que no modelo "um-todos" da era do broadcast

Antes, o sucesso poderia depender do sim ou não de um chefe de programação ou supervisão musical de uma emissora, de um radialista, do responsável pela vitrine das Lojas Americanas ou do editor de uma playlist. Hoje essa influência está distribuída em milhares de outros atores/fatores, o algoritmo ajuda o usuário a ser um deles. Cada busca, cada play, cada like, cada view ou cada demonstração de interesse do usuário que possa ser numericamente representada conta. Essa é uma mudança fundamental de direção para o mercado de conteúdo, podemos ainda não saber exatamente quem ganha ou perde no mercado mas sabemos que ele é muito diferente do mercado os anos 90 e será ainda mais dinâmico do que é hoje. 

No momento, gêneros musicais "quase desconhecidos" estão gerando bilhões de streams, criando carreiras praticamente do zero. Alguns artistas lançam diversas versões de uma mesma música para aproveitar tendências das redes sociais — essa aqui tem quatro (prática que passou a ser adotada por artistas globais como Travis Scott) —, outros vêm o livestream de games e as redes sociais como as principais formas de promover suas músicas. A produção musical está acessível para diversos novos criadores, entre outras tendências que estão movimentando o dia a dia da música. 

Se o nosso foco estiver em esperar que o mercado se adeque às nossas necessidades, os artistas e empresas que estão "provocando o algoritmo" ajudarão a levar o mercado para outro lugar. Ja dizia um poeta "do passado”: "aquele que não está ocupado nascendo está ocupado morrendo". 

*Luiz Eduardo Garcia é um executivo com experiência em desenvolvimento de novos negócios. Recentemente, negociou contratos globais entre mais de 50% do mercado global de música gravada (gravadoras e distribuidoras) e a Meta. Desenvolveu e gerenciou o lançamento de importantes produtos musicais no Brasil, como Reels, Música nos Stories (Facebook e Instagram), TIMmusic e outros. Também liderou equipes de negócios na Som Livre e no Sistema Globo de Rádio.

LEIA MAIS: Como ganhar audiência no streaming através das playlists

 

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