Instagram Feed

ubcmusica

No

cias

Notícias

Algoritmos de recomendação: que tal uma pausa pra contemplar e refletir?
Publicado em 06/10/2023

João Marcello Bôscoli fecha semana dedicada a este tema central na indústria do entretenimento falando sobre o próprio conceito de entreter

O uso de algoritmos de recomendação nas plataformas de streaming é um tema tão polêmico quanto pouco conhecido em detalhes, mesmo entre especialistas no mercado musical. Embora muitos defendam que houve uma democratização sem precedentes no acesso à música nova com a difusão dessa tecnologia de inteligência artificial — baseada num complexo sistema de classificação de usuários para sugerir a música "certa" à pessoa "certa" —, também são vários os críticos do método, por verem um enviesamento nos algoritmos, que, controlados pelas big techs, utilizariam critérios econômicos nas recomendações e manteriam as pessoas em suas "bolhas", sem oferecer de fato novidades.

Na segunda-feira (2), Dani Ribas, doutora em sociologia com tese e trabalhos sobre os algoritmos, abriu o debate aqui no site da UBC. Na terça (3), foi a vez de Luiz Eduardo Garcia, empresário e consultor com ampla experiência no mercado musical, tanto do lado das gravadoras como das plataformas digitais. Na quarta (4), quem assinou um artigo sobre o tema foi Dani Faria, empresária musical responsável pelo selo Urban Pop e sócia de Kamilla Fialho na K2L Empresariamento Artístico. Na quinta (5), o articulista foi Clemente Magalhães, produtor musical, consultor de marketing digital, criador de conteúdo e diretor de A&R na Corredor 5 Music Lab.

Hoje, quem fecha a semana é João Marcello Bôscoli. produtor musical, empresário, fundador da gravadora Trama e filho de artistas, mais exatamente de dois enormes nomes da música, Elis Regina e Ronaldo Bôscoli. Em vez de abordar diretamente o tema dos algoritmos, João vai além: mergulha na raiz de palavras como entretenimento e cultura para questionar a forma em que a arte hoje é consumida (esgotada) seguindo puramente uma lógica dura de mercado. 

Algoritmos de recomendação: que tal uma pausa pra contemplar e refletir?

Por João Marcello Bôscoli, de São Paulo

Muito se fala sobre entretenimento, mas… o que realmente essa palavra significa? E de onde veio?

Com a curiosidade de sempre, há alguns anos fiz uma pequena pesquisa e guardei no meu celular para consultas pontuais. Entretenimento é uma atividade destinada a dar emoção, prazer, diversão, distração, recreação ou relaxamento para uma pessoa ou grupo (audiência). Pode ser de forma passiva, como ao assistir a uma ópera ou um filme, ou ativamente, como em jogos ou shows de música.

Entreter vem de intertenere, do latim medieval, e quer dizer algo como “para manter dentro” (a partir de inter, dentro; e tenere, para manter). A raiz indo-europeia da palavra tenere é ten, esticar. A mudança no sentido, de esticar para segurar, presumivelmente ocorreu a partir do fato de ter que segurar alguma coisa para poder esticá-la.

Quando a palavra entrou no inglês vinda do francês, no final do século 15, significava manter, conservar/to maintain, to keep up. Na época de Shakespeare, a palavra adquiriu um significado de "envolver ou manter a atenção de uma pessoa". Sir Francis Bacon a usou em 1626 para significar "para se divertir”.

Abaixo, uma possível linha do tempo.

  • A partir de 1530: provisão para apoio de um retentor; forma coletiva de comportamento social; receber um convidado.
  • O sentido "a diversão de alguém" e "apresentar algo para consideração" surgiu a partir de 1610.
  • O sentido "aquilo que diverte" surgiu a partir de 1650.
  • O sentido "performance ou exibição pública com intenção de divertir" é a partir de 1727.

Entreter: manter alguém em um certo estado de espírito, do francês antigo entretenir, manter juntos, ficar juntos, apoiar. Outros sentidos sao soldo, salário, pagamento, receber um convidado. (Pra mim, pessoalmente, entretenimento era aquilo que eu fazia na sala de estar quando os convidados chegavam e minha mãe ainda estava se arrumando. “João, por favor vai lá e entretém as pessoas enquanto eu acabo de me aprontar.”)

As palavras são vivas (podem morrer, inclusive) e, com o passar do tempo, vão se transformando, ganhando novos significados, perdendo outros. Portanto lembrar que no âmago de entretenimento está manter, conservar, apoiar, ficar juntos é fundamental, sobretudo nos dias de hoje, quando a preocupação com o planeta tornou-se urgente e incontornável.

Talvez a palavra entretenimento tenha herdado a acepção original de cultura, que vem do latim colere (cuidar, cultivar). Puericultura, cuidar das crianças; agricultura, cuidar da terra, e assim por diante. Mesmo tendo em sua percepção contemporânea algo de fugaz, de assimilação instantânea, a perenidade está na sua essência. Entretenimento pode ser cultura. E cultura pode entreter.

Nesse cenário, vale analisar o sentido original de consumo. Vem do latim consumere, significando esgotar. Tomei um susto quando soube disso.

Tratando especificamente da minha área de atuação profissional e interesse humano, chama atenção ler ou ouvir a expressão “consumir música”, mesmo partindo da premissa de ter ocorrido mutações no seu sentido. “Consumir cultura” soa uma contradição em termos.

Ainda mais em um momento histórico em que estão presentes de forma intensa os microciclos de 15 segundos, um tipo de nicotina digital onde o prazer se inicia e encerra em uma velocidade já percebida pela ciência como destrutiva para nosso cérebro, minando a capacidade de atenção, processamento e retenção de informações.

O tempo mínimo necessário para termos certa conexão com algo, gerando possíveis emoções e sentimentos ficou escasso demais, mesmo para o entretenimento. A aceleração aguda tem levado parte da população mundial a um comportamento semelhante ao dos zumbis ficcionais - sobretudo as pessoas mais novas e as crianças. Toneladas de remédios são prescritas.

No início do século passado, para descrever o fenômeno surgiu a palavra anoesis: um estado de pura sensação ou emoção sem conteúdo cognitivo; sentimentos sem entendimento. Vale registrar que burn-out surgiu no mesmo período. “O futuro do livro é a frase” tornou-se real.

Consequentemente, textos, imagens e sons bem mais curtos, fragmentados e velozes viraram padrão na busca pela comunicação com um público cada vez mais difícil de dar atenção alguma a qualquer coisa. E, na música pop, introduções quase inexistentes e melodias cada vez menores e mais repetitivas como fórmula para serem lembradas.

O que antes era parte do léxico de tabloides e programas sensacionalistas passou a ser um tom habitual dessa era. Emergem gigantescos o bizarro, o grotesco e o chocante como parte de um método para nos fazer estacionar por segundos em algum assunto. E acaba dando certo. Mas a gente se acostuma e quer mais.

A mediação de noradrenalina se intensifica; nossa capacidade de sonhar diminui. Sim, esse lance todo chegou ao sono.

Nesse ponto, o entretenimento pode ajudar na solução, ser uma ponte entre o hiperestímulo contínuo e a desaceleração pontual, a pausa para contemplação e reflexão. Ouvir uma música do início ao fim é um grande primeiro passo. Se for de olhos fechados, então, bem melhor.

Alguns minutos sem checar recados, ver telas ou viver interrupções trazem muitos benefícios. Recuperar alguns dos sentidos originais do termo entretenimento também. “Cuidar, manter juntos”. No caso, corpo, mente e espírito.

LEIA MAIS: AI ou A&R? Eis a questão na indústria musical

 

LEIA OS OUTROS ARTIGOS:

Algoritmos de recomendação: Um copo d'água turva meio cheio e meio vazio, por Dani Ribas

Algoritmos de recomendação: Por que não olhá-los com lentes do passado, por Luiz Eduardo Garcia

Algoritmos de recomendação: Tem que 'gostar' deles para usá-los a seu favor, por Dani Faria

Algoritmos de recomendação: Como não amá-los?, por Clemente Magalhães


 

 



Voltar