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O que está por trás dos cancelamentos de tantos festivais e turnês
Publicado em 10/06/2024

De eventos de pequeno porte a shows de grandes astros da música, a indústria do entretenimento ao vivo passa por turbulências

Por Nathália Pandeló, do Rio

Anavitória se apresentam na edição 2023 do Doce Maravilha, no Rio: edição deste ano, que seria em Curitiba, foi cancelada. Foto: Divulgação

Quem olha para o amplíssimo calendário de shows e grandes eventos no Brasil poderia não suspeitar, mas a indústria do entretenimento ao vivo vem passando por um choque de realidade: nem mesmo artistas muito famosos conseguem garantir a venda de ingressos e lotar estádios. O resultado é uma onda de cancelamentos e readequações de turnês e festivais que envolve desde eventos nichados a megaturnês e festivais com nomes consagrados. Os motivos são variados, passando por questões como oferta excessiva, custos em alta e o poder aquisitivo do brasileiro.

O pós-pandemia veio com tudo, abrindo novamente um setor que passou por maus bocados em 2020 e 2021, quando a conta do prejuízo já chegava a R$270 bilhões. Mas a retomada foi em grande estilo. Em 2023, já era possível contar 298 festivais de música por todo o país - um crescimento de 138% com relação ao ano anterior. Agora, parte do otimismo se desvaneceu e deu lugar à insegurança financeira e preocupações com eventos climáticos extremos. 

Segundo um levantamento do site Mapa dos Festivais, até meados de maio de 2024, 18 eventos alteraram suas datas, com oito cancelados, nove adiados e um parcialmente cancelado. Festivais como Doce Maravilha (PR), Africa Express (SP), Límbico Festival (SP) e XXXPERIENCE (SP) foram cancelados. Entre os adiados, estão Flow Festival (SC) e Prime Rock Festival Porto Alegre (RS), muitos devido à catástrofe climática que atingiu o Sul. Além disso, vários festivais não anunciaram suas datas para 2024, como Breve (MG) e MITA (SP). Eventos como o Carambola (AL) mudaram suas datas estrategicamente para evitar chuvas e facilitar o turismo cultural e captação de patrocínios.

O fator financeiro, aliás, está no coração da questão. Influencia desde o início da jornada de um evento, com a curadoria, passando pelas vendas de ingressos até chegar nas ativações de marcas que se tornaram onipresentes nos festivais. 

“Custos crescentes na realização dos eventos e o alto custo de vida no Brasil talvez estejam entre as razões que afetam a estratégia de shows em estádios ou espaços de grande porte e os festivais. Estima-se que a oferta de eventos dobrou logo depois da pandemia, com uma ânsia muito grande por shows e eventos, e isso inflacionou esse mercado, incluindo os cachês dos artistas. É algo que não se sustenta porque o consumidor não tem como estar em todos eles e, sobretudo, pagar esses ingressos, taxa da empresa de venda ingressos, além dos altos preços por alimentos e bebidas nesses eventos”, lembra Léo Feijó, Diretor da Escola Música & Negócios e mestre em Empreendedorismo Musical pela Faculdade Goldsmiths, da Universidade de Londres. 

Não é difícil entender como chegou-se a este ponto. Basta acompanhar os aguardadíssimos anúncios de line-up e as constantes notícias de novas megaturnês passando pelo Brasil. Quando há muita procura, a oferta tende a seguir o mesmo ritmo. Essa é apenas uma parte do problema, segundo a visão de Connie Lopes, diretora de festivais desde o já tradicional Back2Black ao recém-realizado Fado em Cidades Históricas.

“No pós-pandemia, as pessoas estavam cansadas de ficar em casa e pagavam qualquer preço para sair para ver shows. Aos poucos, o mercado começou a praticar um preço bem alto de ingressos e a dar às pessoas a possibilidade de dividir esse valor em várias parcelas. Então, muitos se sentiram aos poucos endividados, deixando de comprar para os próximos (eventos). O mercado inflacionou, os cachês subiram mais 100% (comparando com) o que era antes da pandemia. Muita gente nova, devido a esse boom inicial, entrou no mercado achando que era realmente um excelente negócio. Hoje a realidade é um pouco mais cruel, então têm-se visto por aí muitos cancelamentos”, analisa.

Uma pesquisa da Opinion Box e Serasa revelada no final de maio sustenta essa análise. O estudo mostrou que 62% dos brasileiros compram ingressos para pelo menos um show nacional por ano; os que apostam em eventos com artistas internacionais chegam a 27% anualmente. A estimativa é que eles gastem, em média, R$ 200 com alimentação e bebidas no local do show. A conta sobe para R$1.000 por pessoa quando é necessário viajar e se hospedar em outra cidade para conseguir participar dos grandes eventos. Quase metade (46%) compra ingressos utilizando um cartão de crédito; 59% parcelam, caso haja opções sem juros. Mas quase um quinto (19%) recorre ao parcelamento independentemente dos juros.

Não são apenas os fãs que precisam desembolsar alto.

“Na verdade, a maior dificuldade em tirar do papel uma turnê está no investimento necessário. Atualmente, é muito caro viabilizar isso, considerando custos de equipamentos, funcionários e equipe de trabalho. Os cachês estão elevados, e as estruturas são muito custosas. Isso torna os ingressos muito caros, o que afasta o público, que prefere economizar para grandes festivais, como o Rock in Rio, ou para turnês de artistas como Taylor Swift e Bruno Mars”, aponta Dani Faria, diretora-executiva do selo Urban Pop e vice-presidente da agência K2L.

Apesar de os fãs ainda abraçarem os festivais e turnês, o público não se omite de questionar os preços e práticas que vêm se normalizando. E que incluem não só preços altos, mas a a qualidade da comida e bebida, a priorização de influenciadores sobre o público pagante, a venda de ingressos sem line-up definido e a repetitividade de artistas. Há uma demanda por festivais menores e mais acessíveis, com curadoria que inclua artistas locais e eventos gratuitos. Além disso, a infraestrutura desfavorável, o foco desviado da música para a promoção de marcas e a falta de planejamento eficaz, especialmente em relação a cancelamentos por motivos climáticos, são pontos de insatisfação.

Público numa edição do Prime Rock. Edição 2024 em Porto Alegre foi adiada por conta da catástrofe climática. Divulgação

Claro que todo esse contexto não é uma questão apenas do mercado de shows no Brasil. Tanto é assim que o Coachella, dono de uma das marcas de festivais mais conhecidas no mundo todo, teve a sua venda de ingressos mais lenta em uma década para o evento que aconteceu ao longo de dois finais de semana em abril de 2024 nos EUA. Já em maio, a aguardada turnê de retorno do duo The Black Keys teve de ser reestruturada – os shows, inicialmente anunciados em arenas, precisaram ser movidos para espaços mais condizentes com a venda real de ingressos. 

“É um fenômeno que percebemos em outros mercados, como no Reino Unido. Em 2023, a Associação de Festivais Independentes (AIF) informou que um em cada seis festivais no Reino Unido terminou desde a pandemia, com os números caindo de 600 para menos de 500 (em 2019, os números do governo contavam quase 1.000). No Brasil e no Reino Unido, o impacto é maior nos festivais de médio e pequeno porte. São esses produtores que enfrentam maior dificuldade em atrair marcas. No Brasil, o apoio do poder público por meio de leis de incentivo e editais ainda é limitado”, contextualiza Feijó. 

O panorama é preocupante porque, como ele explica, são os festivais independentes e de nicho e as casas de shows de pequeno e médio porte que fazem o trabalho de base ao longo do ano, solidificando as cenas e a cultura da música ao vivo.

“A verdade é que para o Rock in Rio não há crise, mesmo considerando todos esses fatores. Por isso é preciso olhar para a indústria da música em um contexto mais amplo. Em paralelo, as casas de espetáculo estão sendo sufocadas. Onde estão os gargalos? Sabemos que a pesquisa e o desenvolvimento artístico, a inovação na indústria está nas casas de shows de médio e pequeno porte, além dos festivais independentes. Como tornar esse circuito sustentável?”, indaga Léo Feijó.

Uma das propostas vem da associação Music Venue Trust (MVT): separar 1% da arrecadação com ingressos em grandes espaços de eventos e festivais de grande porte para financiar artistas independentes. A MVT reúne centenas de palcos de pequeno porte no Reino Unido e luta para evitar a triste realidade: a cada ano, dezenas de palcos deixam de existir em solo britânico. 

O modelo de financiamento através de um percentual pago por grandes eventos poderia ser uma das políticas públicas adotadas pela futura Agência Nacional de Música, cuja criação foi encaminhada na última Conferência Nacional de Cultura, em Brasília - e cujos bastidores contaremos na próxima edição da Revista UBC, daqui a alguns dias aqui no site.

Outro dos caminhos para alimentar as bases é acolher verdadeiramente os novos nomes, ajudar a criar novos nichos e oxigenar uma cena menos gigante, com custos menos elevados.

“É essencial incluir (nos line-ups) artistas menos conhecidos, novos talentos e promessas nas programações. Atualmente, a preocupação de quem organiza é colocar somente nomes grandes que garantem a venda de ingressos. No entanto, falta equilíbrio”, diz Dani Faria.

O cenário vem forçando promotores de eventos e curadores de festivais a encararem a dura realidade: não há receita de bolo que garanta sucesso em um mercado que passa por tantos altos e baixos. Porém, o momento é de reavaliar os riscos, sem deixar de investir em um setor que gera tanta renda e emprego e nos grandes ativos que dele derivam. Como os fãs, por exemplo.

Para Dani Faria, eles precisam ser encarados como agentes vitais do ecossistema musical:

“É fundamental que os fãs entendam os custos que há por trás, mas também é necessário que os artistas incentivem o público a se engajar e a valorizar esses eventos. Acredito que é uma responsabilidade compartilhada, realmente uma via de mão dupla.”

O público pode ainda ajudar comprando ingressos antecipadamente, o que é vital para a viabilidade dos festivais, especialmente os independentes.

A inovação e adaptação serão essenciais para a sobrevivência dos shows ao vivo. A nova era dos festivais de música exigirá eventos com propósito, priorizando a cultura, sustentabilidade e respeito ao público e ao meio ambiente. Esse, sim, é um line-up de sucesso garantido.

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