Ambas têm novas atualizações; uma das ferramentas permite ao usuário subir gravações ao sistema para gerar músicas no mesmo estilo
Por Lucia Mota, de San Francisco (EUA)
Colaboração de Alessandro Soler, do Rio
Enquanto o processo movido nos EUA pelas grandes gravadoras contra as duas principais startups de música gerada IA, Suno e Udio, vive um momento de “calmaria”, ambas as empresas apresentam novidades que jogam ainda mais lenha na fogueira da disputa entre criadores humanos e máquinas.
Na quarta passada (7), a Suno anunciou a versão 4.5 de seu modelo de geração musical, que traz uma expansão considerável no número de gêneros musicais disponíveis, além de permitir combinações mais complexas entre eles. Basicamente, as pessoas escrevem como querem que soem suas faixas, e a nova ferramenta entrega pack de acordes e arranjos feitos a partir de diferentes estilos musicais. Outra novidade está nos vocais, que agora “oferecem maior alcance e profundidade emocional”, segundo a empresa.
Enquanto isso, a Udio há alguns dias apresentou dois novos recursos em sua plataforma: o sistema “Styles” e a versão 1.5 do seu modelo, chamada “Allegro”. O novo recurso “Styles” permite aos usuários gerar músicas originais inspiradas no “DNA sonoro” de qualquer faixa que eles enviarem à plataforma. A ferramenta consegue replicar a instrumentação, o tom e o clima da faixa de referência — seja ela uma demo caseira ou uma produção finalizada.
Para supostamente evitar o uso indevido de obras protegidas, o sistema "exige" que os arquivos enviados “sejam de propriedade do usuário ou devidamente licenciados.” Algo não só difícil de verificar como enganoso. Para Raquel Lemos, advogada especialista em direito autoral, professora e sócia da Lemos Consultoria Ltda. e Art.is Cultural, trata-se de um escudo jurídico:
“Assim, a responsabilidade recai sobre o usuário para isentar a plataforma sobre a violação de direitos autorais. Quando uma empresa permite o upload de arquivos, a estratégia jurídica é de neutralidade. Mas, quando essa ferramenta ativa um recurso que estimula a criação a partir de uma faixa específica, sem qualquer verificação ou preocupação em resguardar direitos dos titulares, aí a omissão vira uma escolha”, ela descreve.
James Grimmelmann, professor de direito digital e da informação na Cornell Law School, dos Estados Unidos, também manifestou preocupação.
“São passos inquietantes. Aparentemente, as ações judiciais movidas pela indústria não só não detiveram essas empresas. Elas parecem estar dobrando a aposta. As ações que as majors movem contra elas têm grande chance (de prosperar), é evidente que há uma densidade grande de informações protegidas por direitos autorais nas músicas subidas a essas plataformas, sejam as mineradas por elas ou subidas pelos usuários.”
As ações contra as duas startups correm desde junho de 2024. Naquele mês, a Associação da Indústria Fonográfica dos Estados Unidos (RIAA), representando a Sony Music Entertainment, Universal Music Group e Warner Music Group, entrou com processos contra a Suno e a Udio. As gravadoras alegam que essas empresas utilizaram gravações protegidas por direitos autorais para treinar seus modelos de IA sem autorização, caracterizando uma violação em "escala quase inimaginável". As ações foram movidas nos tribunais federais de Massachusetts (contra a Suno) e de Nova York (contra a Udio), buscando indenizações de até US$ 150 mil (R$ 847 mil) por cada obra violada.
Em agosto de 2024, a Suno e a Udio apresentaram suas defesas nos tribunais, argumentando que o uso das gravações para treinamento de seus sistemas de IA se enquadra no princípio do "fair use" (uso justo) previsto na legislação de direitos autorais dos EUA. As empresas afirmam que suas tecnologias “ajudam usuários a criar músicas originais e que as ações judiciais visam a suprimir a concorrência independente”.
Diferentes analistas e advogados rebatem as alegações das empresas, deixando claro que o “fair use”, previsto para usos educacionais e sem fins lucrativos, não se aplica a plataformas multimilionárias que oferecem serviços de assinatura. Na prática, a mineração de obras protegidas, que tanto a Suno como a Udio já admitiram fazer, são concorrência desleal com os criadores humanos, já que seus trabalhos são usados sem licença ou pagamento e, no final, terminam contribuindo para gerar novas “músicas” que competirão com as suas no mercado.
“A partir do momento em que o acesso a ferramentas como o ‘Styles’ apresenta a possibilidade de assinatura, estamos falando de um benefício econômico direto. A plataforma não precisa ter cometido a infração diretamente, basta que tenha lucrado com ela e que tivesse a capacidade de impedir ou evitar a violação”, pondera Raquel Lemos. “A disponibilização da ferramenta pode, sem dúvida, ser usada como argumento jurídico nas ações em curso. Ela evidencia que a plataforma não apenas permite, mas, de certo modo, incentiva o uso de obras protegidas como base para a criação de novas músicas. No fim das contas, o que está em jogo não é apenas a legalidade do conteúdo gerado, mas a responsabilidade pela cadeia de decisões que leva à sua criação. E esse raciocínio já está sendo analisado com atenção pelos tribunais dos EUA.”
Não há, por enquanto, novidades públicas sobre os processos, mas veículos especializados dos Estados Unidos preveem decisões ainda para este ano.
“Qualquer que seja o resultado, essas ações não sinalizam o fim da música gerada por IA, muito pelo contrário. Essa tendência já não tem volta”, afirmou Michael G. Wagner, especialista americano em mídia digital com 30 anos de experiência. “O que os defensores do direito autoral buscam é o estabelecimento de precedentes cruciais sobre o uso de obras protegidas para treinar esses sistemas. É necessário estabelecer regras claras. A situação atual, de uso de obras alheias sem autorização, pagamento ou um direito claro ao opt-out (exclusão), é insustentável.”
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