Cantor, editora musical, compositor/empresário e representante de compositores comentam uma polêmica que condiciona todo o mercado
Por Alessandro Soler, de Salvador
Os preços de liberação de obras — sobretudo de autores consagrados — para regravação continuam a ter ajustes neste segundo trimestre de 2025. Editoras consultadas pela UBC confirmam que a onda de adequações dos valores, como descrevem, tem sido calibrada pela resposta do mercado, de maneira a corrigir anos de defasagem sem deixar de ouvir as queixas de intérpretes, principalmente os independentes. Em alguns casos, os pagamentos exigidos para a liberação de uma canção saltaram de R$ 800 para R$ 5 mil. Em situações pontuais, para obras de extrema relevância, a liberação de uma faixa pode rondar atualmente os R$ 10 mil ou até R$ 12 mil.
Para além do sensacionalismo que muitos vêm fazendo com os valores em si, está a justa necessidade de garantir aos criadores uma remuneração mais condizente com sua importância para a própria existência da indústria musical, dizem autores. Enquanto isso, alguns cantores e cantoras criticam os reajustes, sustentando que eles prejudicam a dinâmica de regravações, tão disseminada no mercado desde sempre, e necessária para manter relevantes as obras de catálogo.
Em abril, a UBC publicou uma reportagem sobre o tema, que já vinha suscitando polêmica entre as diferentes partes. Como então esclareceu Marcos Pompiano, head de sincronização da Sony Music Publishing, o fenômeno é global e tem relação direta com os baixos pagamentos do streaming.
“Talvez no Brasil essa alta seja mais percebida em função do grande número de independentes que buscam uma obra já consolidada. Os serviços digitais pagam pouco por reprodução, e a elevação no valor pode equilibrar um pouco mais a distribuição de receita entre criadores e distribuidores”, afirmou o especialista.
A VISÃO DE UM INTÉRPRETE INDEPENDENTE
Um desses independentes que buscam regravar canções de grandes autores, e que se queixam dos preços atuais, é o pernambucano Ayrton Montarroyos. Com 29 anos, cerca de 35 mil ouvintes mensais no Spotify atualmente e regravações de clássicos como “Trem das Cores” (Caetano Veloso) e “Eu Sei Que Vou Te Amar” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) entre suas faixas mais ouvidas, ele é quase exclusivamente intérprete, com poucas composições próprias.
“Um intérprete é quem, com sua voz, seu instrumento, sua performance, vai fazer com que uma obra musical ganhe vida, ou uma nova vida, a partir de si. Caetano, um dos maiores compositores do nosso país, alcançou sucessos inéditos quando regravou “Sozinho”, escrita por outro, o Peninha. Por que a música não fez tanto sucesso com o próprio Peninha? Porque Caetano soube dar-lhe uma linguagem, uma roupagem únicas. Este também é um trabalho criativo, de construção musical, que deve ser respeitado”, afirmou em entrevista à UBC há algumas semanas. “Temos no nosso cancioneiro Cauby (Peixoto), Emilio (Santiago), Dalva de Oliveira, Elis (Regina), Gal Costa, (Maria) Bethânia e tantas outras pessoas que fizeram e fazem um trabalho fundamental de elaboração musical. O intérprete deve ter voz nesse debate.”
E que posição defende a voz de Ayrton Montarroyos?
“Nós, intérpretes, não podemos ser penalizados pelo sistema do streaming que é, de fato, distorcido. Plataformas e gravadoras ganham muito, os criadores das canções ficam com tão pouco, e os intérpretes, muitas vezes, nem ganham nada. Deve haver melhores pagamentos, e as plataformas devem ser mais transparentes nas listagens. Mas é também injusto que, por conta desse panorama, nós, que garantimos a sobrevivência de tantas obras no tempo, paguemos o preço”, sustentou.
O cantor Ayrton Montarroyos. Foto: Luan Cardoso
Ele citou as disparidades do mercado musical para propor valores de liberação baseados na natureza do trabalho dos intérpretes, se mainstream ou independente:
“Apesar de ser independente, nem falo tanto por mim, tenho acordos com selos e posso pagar as liberações das músicas que quero gravar. Se você é uma Maraísa, uma Pabllo Vittar, então, que têm o apoio de uma máquina (fonográfica), consegue absorver sem problema os aumentos. Agora, um intérprete pequeno, que, muitas vezes, se interessa por compositores para os quais os grandes não olham, um Capiba, um Luiz Bandeira, um Francis Hime, um Aldir Blanc, um Guinga ou mesmo um Belchior, não consegue pagar. E uma das nossas funções, dos intérpretes que amamos a música brasileira, é fazer com que esses compositores voltem a ser gravados, é preservar a tradição da oralidade. Que jeito, com os preços como estão? Lembro de ter pagado coisa de R$ 300 para regravar ‘Mar e Lua’, do Chico (Buarque), há uns anos. Hoje não tem nada, nada, por menos de R$ 1 mil, R$ 1.500. Pode chegar a R$ 6 mil liberar uma só faixa. Resultado? Não consegue, não regrava.”
DEFESA DOS AJUSTES DE PREÇOS
Com pesos-pesados como “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso) no catálogo nacional, além de hits do pop internacional como “Firework” (Katy Perry), “Umbrella” (Rihanna) e "Single Ladies (Put A Ring On It") (Beyoncé) em seu catálogo global, a americana Peermusic é uma das maiores editoras independentes do planeta. Sua diretora no Brasil, Graciela Pechetto, disse ser consciente das queixas de alguns intérpretes.
“Muitos compositores reclamaram que os valores cobrados pelas editoras estavam muito abaixo do que compositores da nova geração vêm cobrando para liberar suas obras. É fundamental entender que há um pool de compositores que só autorizam suas obras inéditas para artistas renomados mediante um valor que pode chegar a ser de 5 a 10 vezes mais do que uma editora cobra por uma obra consagrada”, ela disse à UBC.
Em meio às discussões nas redes sociais sobre os reajustes de preços, muitos comentários trazem críticas às editoras, que seriam “as responsáveis” pelos aumentos nos valores pedidos. Pechetto esclareceu que, em muitos casos, esses preços são decididos em comum acordo com os autores.
“A música não existe sem seu criador, que é o compositor. Portanto, é nosso entendimento, na Peermusic, que o criador merece receber valores justos”, analisou a executiva, que, como Pompiano, da Sony, reforçou haver uma relação direta entre os baixos pagamentos do streaming e o panorama atual. “O compositor percebeu que, ao longo dos últimos 10 anos, o streaming paga valores irrisórios. Por outro lado, os intérpretes têm fontes que geram muito mais dinheiro, como o shows.”
Graciela Pechetto, da Peermusic. Foto: arquivo pessoal
Quem fez coro com ela foi Bruna Campos, compositora, representante da UBC no Mato Grosso do Sul e uma profunda conhecedora do universo dos direitos autorais e das dinâmicas de mercados como o sertanejo. Um gênero no qual, como diz Pechetto, as liberações de novos compositores para gravações inéditas custam bem mais do que as obras de catálogo.
“A editora não cobra caro. Ela cobra o que o profissional que a contratou pediu que ela cobre, como administradora dessa obra. O intérprete é alguém que comercializa sua música, sua arte e sua imagem. Recebe cachê com shows, vende espaços publicitários, faz aparições públicas, recebe royalties de álbuns, é convidado para dar entrevistas, tem uma base de fãs, as gravações rendem a eles várias formas de receitas. O compositor só recebe o valor da autorização. Como não há mais venda de produtos físicos, o compositor só receberá algo (significativo) das plataformas se suas músicas tiverem mais de um milhão de plays”, ela descreveu num vídeo com centenas de curtidas no seu canal no Instagram.
Bruna apresentou uma detalhada conta que traduz graficamente o quanto os preços atuais de liberações, por mais altos que possam parecer para alguns intérpretes, estão bem aquém do total que ficava com os autores nos anos dourados das vendas de LPs e CDs:
“Antigamente, o compositor cobrava R$ 200, R$ 300, numa liberação porque, depois, recebia sobre a vendagem dos álbuns”, disse Bruna, que usou a quantidade de ouvintes mensais de Ayrton Montarroyos na época da gravação do seu vídeo para fazer o cálculo: “Você (Montarroyos) tem 47,6 mil ouvintes mensais. Se vendesse um álbum para cada ouvinte, a R$ 17,90, seriam R$ 852 mil de receita. Desse valor, 9,17% pagariam os autores. Então, em um álbum como o seu último, de 9 faixas, cada faixa daria aos autores R$ 8,6 mil, mais do que os R$ 6 mil (que o cantor mencionou ter pago). Se você vendesse CD, teria esse valor em caixa. Hoje, sua música é digital e não rende esse valor. De quem é a culpa? Do compositor? Não, né? O problema não são as políticas de direito autoral”, completou, citando as distorções do streaming e a péssima remuneração por parte das plataformas.
Bruna Campos. Foto: arquivo pessoal
LIBERDADE PARA O AUTOR COBRAR O QUE QUISER
Tanto ela como Graciela Pechetto, da Peermusic, coincidem numa ideia simples: quem determina o preço por uma criação sua é o dono dessa criação, e não quem quer pagar para usá-la. Algo que também argumentou, em conversa com a UBC, Daniel Mendes, fundador do selo e editora Casa Amarela Music, empresário do superastro do piseiro João Gomes e compositor de sucessos para ele e outros intérpretes famosos:
“Liberações são contratos particulares, portanto individuais. Ninguém conhece a história pessoal do compositor, de quanto ele demorou para criar uma obra que as pessoas querem gravar, do que passou para chegar até ali. De repente, aquela música pode ser sua única fonte de receita. Numa gravação, o engenheiro de som cobra, o intérprete cobra, todo mundo ali do estúdio cobra”, elencou, criticando a mentalidade de desvalorização do trabalho de composição que vem se espalhando na indústria, sobretudo entre novas gerações: “Muitas vezes, mesmo artista que está começando gasta um dinheirão no clipe, na divulgação, mas acha que o compositor não tem que cobrar o valor devido.”
Mendes, também conhecido no mercado como Dandan, falou a partir de uma perspectiva 360 de quem “vende” músicas como compositor, licencia-as como editor musical e as “compra” como empresário de João Gomes. Ele disse entender que a negociação deve ser livre e que ao compositor precisa ser garantido seu direito de cobrar o que acha que sua obra vale.
“Assim que comecei a ter minhas obras gravadas por outros artistas, e algumas fizeram sucesso, fui colocado naquela prateleira de gêneros como sertanejo, forró, que têm preços mais altos de liberação. Mas já liberei para samba e MPB sem cobrar. Tenho mil músicas aqui que nunca foram gravadas. Eu posso liberar para vê-las na rua, melhor do que estarem aqui no meu celular. Mas (para liberar) um sucesso R$ 5 mil não é caro, não! Sincronização (para filmes, séries etc.) costumam pagar R$ 15 mil, R$ 16 mil. Uma única vez. E aquela música vai ser explorada pelo resto da vida naquela obra, na maioria das vezes sem que o compositor volte a receber nada”, explicou, defendendo que o compositor saiba valorizar seu trabalho.
Sem se entender nos valores, todos concordam: enquanto não houver uma reorganização importante na distribuição das receitas do streaming, o desentendimento entre os compositores e intérpretes — dois dos elos mais fracos da cadeia — não terá fim tão cedo.
Daniel Mendes. Foto: divulgação
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