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Lô Borges: “não consigo parar de compor, tenho fascínio pelo desconhecido”
Publicado em 19/02/2024

Num longo papo com a UBC, o artista - que já tem três novos discos prontos - explica seu fértil processo de criação: 'é assiduidade'

Por Alessandro Soler, de Belo Horizonte

Foto de João Diniz

Desde o final da década passada, Lô Borges acelerou (ainda mais) seu já vertiginoso processo de composição. Foram 5 álbuns de inéditas em cinco anos, entre 2019 e o ano passado. Mas ele não demonstra cansaço algum.

“Já tenho três discos prontos. E, quando digo prontos, é isso mesmo: um deles já está mixado, pode ser lançado nos próximos meses. O outro está mixando, termina agora em março. E um terceiro, que eu compus no piano, tem as guias de instrumental e voz já gravadas. Só falta gravar os arranjos com a banda”, diz o compositor, músico e arranjador num longo papo com a UBC em que seu processo criativo aparentemente tão fácil, tão fluido, foi o tema principal.

Intuitivamente, é como se ele seguisse a lógica que impera no mainstream contemporâneo internacional: lançamentos em sequência de singles nas plataformas para manter sempre em alta o engajamento dos fãs. Acontece que Lô não lança singles. Sua prolífica produção é sempre de álbuns completos, em que um sofisticado fio costura as ideias para as músicas que brotam em sua mente a todo instante, sem palavras. Com Lô, a criação nasce quase sempre dos sons puros:

“Vem uma inspiração, mesmo. Sento com o violão, muito de vez em quando ao piano, e os sons vão saindo. É uma coisa mais Chico Xavier que cerebral (risos). Tem música que eu faço em 15 minutos. Essa agilidade toda eu aprendi bem no início, há mais de 50 anos: foi no ‘disco do tênis’. Aquilo ali foi uma experiência tão intensa que me marcou para sempre.”

O artista se refere ao segundo álbum da sua carreira, “Lô Borges”, primeiro solo, uma encomenda da antiga Odeon que ele literalmente compôs, gravou e lançou em coisa de seis meses. Tudo graças ao estouro monumental da sua parceria com Milton Nascimento na composição de “Clube da Esquina”, lançado no início daquele mesmo 1972 e que reuniu ainda a caneta e/ou as vozes de nomes como Ronaldo Bastos, Márcio Borges, Fernando Brant, Alaíde Costa, Monsueto e Ayrton Amorim.

O mítico 'disco do tênis', marco zero da agilidade de Lô na composição. Reprodução

“Quando fui gravar o ‘Clube do Esquina’, o pessoal da gravadora não queria muito que o Milton assinasse um álbum com um adolescente desconhecido até mesmo em Belo Horizonte. Mas apostaram, disseram ‘se o Milton, que tem cabeça boa, vai apostar no garoto, vamos nessa também’. Pra surpresa minha, me convidaram a gravar meu disco próprio num intervalo curtíssimo de tempo", lembra. "Eu já tinha gastado toda a munição que tinha, era iniciante, pô! Eu morando no Rio, fora da minha cidade, fiquei em casa semanas compondo, tendo que cumprir o contrato com a gravadora. Compunha e gravava no mesmo dia. Foi uma loucura como nunca mais vivi. Mas me deu uma agilidade para compor que eu não perdi jamais.”

A seguir, os principais trechos da conversa de Lô Borges com a UBC.

 

A celebração dos seus 50 anos de carreira foi bem vertiginosa. Vários discos em sequência, dois deles só no ano passado, inclusive um com a Filarmônica de Minas. Essa voragem faz lembrar a sua estreia no ‘disco do tênis'. Será que inconscientemente era isso? Você queria voltar a essa energia do início, da juventude?

LÔ BORGES: É uma tese boa. Pode ser um pouco isso. Mas a verdade é que em poucos momentos da minha carreira eu me afastei da composição. Dos anos 2000 pra cá, voltei a compor para valer. Para simplificar, eu quase dobrei minha produção do século XX no século XXI. Desde 2019, entrei nessa coisa maluca de um disco por ano (dois em 2023). Não consigo parar de compor, tenho fascínio pelo desconhecido, ele continua presente sempre na minha obra. Quando fiz o ‘disco do tênis’, era para cumprir contrato. Mas atualmente não tenho ninguém me pondo pilha, faço música porque me divirto, porque me sinto bem. Na atualidade, a composição está num lugar muito especial pra mim. Adoro fazer shows, mas eu sou um cara da composição. E quase sempre com parceiros. O “Rio da Lua” (2019) teve letras de Nelson Angelo. O “Dínamo” (2020), com o Makely Ka. O “Muito Além do Fim” (2021), com meu irmão (Márcio Borges, com quem compôs grandes clássicos da MPB)… Não quero bater recorde nenhum, não (risos)! Mas, enquanto tiver inspiração, tenho mais é que continuar. Não tenho freio.

O seu processo de composição é sempre muito veloz?

Sempre. Como já disse tantas vezes, o álbum de estreia foi o que me ensinou a ter agilidade. Quando estou compondo a música - não a letra, claro -, se ela demora mais de 30 minutos para sair, já acho que não vai ficar boa (risos). Pego meu iPhone, gravo no gravador dele, escuto o que fiz e vou corrigindo. Dez minutos depois, já parto para a segunda gravação. Na terceira, está pronta e mando para o parceiro. Quase sempre com a base em violão ou viola caipira, de vez em quando com o piano. Mas sou mesmo um cara do violão, da guitarra. Toco bossa nova no violão, toco choro no violão… É meu instrumento de fé. Mas compus “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo” (parceria com Márcio) no piano, “Paisagem da Janela” (com Fernando Brant), “Para Lennon e McCartney” (com Márcio e Brant)… Só que esta última eu acho que já nem sei mais tocar no piano (gargalhadas).

Agora, tem uma coisa: é rápido, mas é constante. Acho que esse é o segredo. Meu saudoso pai falava uma coisa bacana que eu me baseio nela até hoje: ‘meu filho, uma coisa bacana em você é que tem o dom, mas ele não é vantagem, a gente ganha do universo… O que você tem de especial é a virtude de trabalhar o dom.’ Tem gente que tem o dom de compor e acaba não compondo muito. Componho com facilidade e naturalidade, espontaneamente, porque é algo incorporado ao meu cotidiano. Já disse em entrevistas que cheguei a me sentir um compositor compulsivo. Já não acho que é compulsão. É assiduidade, é frequência, é você estar disponível pra composição. É igual sair pra pescar: pode ter a vara, a linha, o anzol, o rio e o peixe. Mas, se você não jogar a vara no rio, não vai pescar nada. A minha música é uma pescaria diária.

Nesse processo tão prolífico, muitas criações vão se acumulando, mesmo com tantos discos lançados, não? O que pretende fazer com essas composições?

Tenho mesmo um montão de músicas acumuladas. Já tenho três discos prontos. E, quando digo prontos, é isso mesmo: um deles já está mixado, pode ser lançado nos próximos meses. O outro está mixando, termina agora em março. E um terceiro, que eu compus no piano, tem as guias de instrumental e voz já gravadas. Só falta gravar os arranjos com a banda. Mas não me preocupo com números: “quinto de inéditas em cinco anos, seis em seis, sete em sete…” Não é meu objetivo. Meu objetivo é eu colocar minhas ideias em dia, estar em dia com minha vontade de me expressar musicalmente neste mundo muito maluco, com muitas guerras, aquecimento global, desigualdade, miséria. O mundo, se for olhar ao redor, é melhor ficar em casa compondo mesmo (risos). Não estou reclamando da vida, eu tenho amor à vida, gosto da vida, mas o mundo está difícil, e a composição ameniza minha relação com o mundo que, às vezes, é um pouco crítica demais.

Em que pensa quando compõe?

Parodiando o Caetano, penso em como é bom tocar um instrumento. Penso só na música. Tem aquele cara que lê algo no jornal e compõe. Tem o observador do cotidiano, o cara que leva magistralmente a realidade para a música… O Noel Rosa era assim. Os Beatles também. Acho bonito e bacana, mas comigo é diferente, não é um processo consciente. Não sou um alienado nem vivo numa bolha chamada música, sei o que está acontecendo no mundo. Mas não levo conscientemente essas coisas pro processo de criação. Quando eu sento, é quase uma abdução. Me abstraio de tudo e faço uma música. A musa inspiradora são as notas, as harmonias, as melodias que você cria em cima das harmonias. Primeiro, sempre a harmonia. Depois, a composição. As letras eu não tenho feito. Terceirizo.

E como é o processo de criação da letra? Você dá uma pauta ao parceiro? Diz a ele o tema que gostaria de abordar? Ou o deixa livre?

Comento que poderíamos falar de certas coisas. Meus parceiros sempre dizem que sou tranquilo de trabalhar porque deixo o letrista bem à vontade. Se o que tenho em mente é um disco denso, chamo uma pessoa que tenha maior profundidade no texto. Se faço mais pegada rock, chamo roqueiro. Mas os temas em si eu deixo o cara livre para escolher. Claro que opino pra caramba depois que chegam as letras. “Isso aqui não acho que deve ser assim. Isso aqui tá perfeito. Isso aqui podia mudar.” Dou liberdade ao parceiro para escrever o que quiser, mas falo sempre o que acho da letra que ele me mandou. Alguns falam “Lo tá me dando bomba nas letras” (risos).

Tem trabalhado com algum parceiro mais frequente nos últimos tempos?

Tenho trabalhado mais é com um cara que nasci na mesma casa que ele (risos). Tirando o Márcio, é mesmo um pouco aleatório. O meu disco de 2003 teve letra do Tom Zé. Nunca tinha feito com Arnaldo Antunes também, ali teve. Teve letra do Chico Amaral… Em 1996, fiz um disco chamado “Meu Filme”, que tem letra do Caetano, “Sem Não”. Ele cantou comigo, foi supergeneroso. Enfim, vario muito de parceiro. O mais recorrente é o Márcio. Nando Reis é bissexto.

O seu processo de criação jamais nasce das palavras?

De palavras completas, não. Mas com frequência vem de sílabas, vogais, sonoridades. Ba da ba de ba di ba dá. Isso, sim. Parceiros meus gostam que eu mande cânticos aleatórios de vogais e sílabas, porque os inspiram na hora de encaixar palavras. Se eu mando badá badá, ele não vai escrever palavra terminada em ão (risos). Então, não deixa de ser uma pauta inconsciente.

O que ainda falta realizar? Qual o seu grande sonho ainda não cumprido como artista?

Realizei um que eu nem sonhava que fosse um sonho, e me convidaram pra esse sonho, que foi a história com a Filarmônica de Minas. O maestro Fabio Mechetti esteve aqui em casa, e foi um processo de muito trabalho… Fui à casa dele umas 10 ou 15 vezes, passei todas as minhas harmonias pra ele, ele mandou arranjos maravilhosos. O Neto (Bellotto, arranjador) mandava os arranjos, duas horas depois eu já mandava feedback, ele dizia “pô, você é um cara comprometido”. Essa foi uma grande realização pra mim, fazer um concerto com 70 músicos. Nunca tinha vivido algo assim. Sou um cara simples. Minha vida é descomplicada. Saio para tomar vinho com os amigos, as amigas. Tomo banho de cachoeira, componho muito, curto as coisas simples. Daqui a pouco pode vir uma nova ideia, um novo sonho, estou aberto. Mas agora estou muito tranquilo, “solto no mundo, solto no espaço, nada me prende, eu posso ir. Sentado na cama, pensando na vida, eu busco tesouros e ser feliz. Sou um pescador de canções.”

 

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