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Três temas que mobilizarão o mercado da música em 2024 (e muito além)
Publicado em 16/01/2024

Autor de livro sobre o tema, o acadêmico Leonardo De Marchi fala à UBC sobre IA, novos meios de financiamento de artistas e o pós-streaming

Por Alessandro Soler, de São Paulo


Leonardo de Marchi. Foto: L. Gabriel

Ainda rei absoluto no mercado musical, o streaming, principal fonte de receitas e royalties, vem tendo a durabilidade do seu modelo de negócio cada vez mais posta em dúvida. À medida que a geração Z abraça sem freios a experiência musical imersiva (em seus próprios vídeos no TikTok, em videogames como Fortnite ou, num futuro ainda incerto, no metaverso), fazer uma assinatura e pagar para ouvir arquivos puramente de áudio em plataformas como Spotify ou Apple Music pode estar caminhando para se tornar um hábito de nicho.

Essa mudança ainda não será este ano. Provavelmente, em larga escala, nem mesmo nesta década. Mas, junto com outras várias transformações atualmente em curso, é um dos grandes temas nos quais qualquer observador do mercado musical deveria prestar atenção. Porque impactará ainda mais uma indústria que vem experimentando desafios sem parar desde, pelo menos, a crise da pirataria que a deixou de pernas pro ar na virada do século.

O cenário pós-streaming é um dos temas que Leonardo De Marchi aborda em seu recém-lançado livro “A Indústria Fonográfica Digital: Formação, Lógica e Tendências” (Mauad X). Pesquisador do tema há mais de 15 anos, De Marchi é professor e um dos coordenadores do programa de pós-graduação em Comunicação da ECO/UFRJ, com doutorado focado na indústria musical realizado entre o Brasil e a Espanha, e que deu origem a seu primeiro livro, “A Destruição Criadora da Indústria Fonográfica: 1999-2009”.

Num longo papo com a UBC, ele falou sobre os três temas que acredita que mobilizarão o mercado da música. Todos eles costurados por uma ideia: a música virou um asset, um ativo, e a lógica do mercado financeiro tem grande impacto em tudo o que acontece atualmente nesta indústria.

Confira os principais trechos:

 

Vamos começar pela palavra final do título do seu livro: as tendências. Quais são elas? Sobre quais temas a indústria está falando agora mesmo (ou, se não está, deveria)?

LEONARDO DE MARCHI: O primeiro deles é o cenário pós-streaming. Os serviços de streaming estabilizaram o mercado nos últimos anos. Não tem mais experimentação de tecnologias e modelos de negócios. Só que, no horizonte mais próximo, temos inovações que prometem levar o mercado pra outro lugar. No livro, destaquei três: a plataformização da música ao vivo, que a gente viu avançar muito rapidamente na pandemia, especialmente pelo uso de música ao vivo em lives ou uso de fintechs para vender e fazer experimentações em relação à música ao vivo. Também vai haver uma aposta mais forte em realidade virtual e expandida: Fortnite e outros videogames provaram que é possível tecnicamente e provável financeiramente. Vai ter a música ao vivo andando paralelamente à música gravada, diferentemente do que ocorria no final do século XX, quando a fonográfica era mais importante, e no início do XXI, quando o ao vivo era mais importante, após o enfraquecimento das discográficas. Todos esses fatores são ameaças verdadeiras ao streaming como ele funciona hoje.

Segundo tema: o uso intensivo de fintechs para financiar carreiras musicais e a própria atividade musical. Como serviços de streaming utilizam uma lógica que vem do mercado financeiro, pagam pouco e exigem que os artistas interiorizem a ideia de que precisam produzir sem parar para poder ganhar um pouquinho mais. Com isso, temos visto os artistas irem atrás de novas formas de se financiar. As NFTs, sobre as quais quase ninguém mais fala, são um exemplo: vender experiências ou algo exclusivo e colecionável ao fã foi uma iniciativa vista como uma saída para o pouco dinheiro gerado pelo streaming. Mas agora temos um cenário de criptomoedas ligadas à música e até bancos digitais exclusivos para financiar projetos musicais. Temos meios de pagamento em que uma pessoa lança um disco numa plataforma independente, e o algoritmo já joga o dinheiro das vendas em criptomoeda para ela numa conta. O artista passa a pensar a sua conta como um asset do mercado, um produto, tornando o fã um investidor nele.

E, finalmente, o terceiro tema: o uso intensivo de inteligência artificial generativa para produzir música. Tema central do momento e dos próximos anos, com suas implicações financeiras, estéticas. Sobre as financeiras, fala-se muito. Mas é interessante notar que pouco se fala da implicação estética. O uso de uma nova tecnologia que não produz uma estética própria é algo totalmente novo na história da música. A IA generativa replica estéticas do passado, não traz nada de novo em si. Isso dá o que pensar.

A mistura de fintechs com a música, como você menciona, não é algo isolado. Grandes fundos de investimento jogam rios de dinheiro na compra de catálogos musicais, e a música, mais do que nunca, virou um produto. Em que medida isso afeta a criação?

No capitalismo clássico, você desenvolvia um carro, e ele durava décadas. Agora, está por todos os lados a lógica do mercado financeiro, que é a produção de novos produtos o tempo inteiro. Está ocorrendo uma financeirização da economia da música. Sempre vai ter um blockchain aqui, um NFT ali, uma nova criptomoeda acolá… e, atrás disso, toda uma cena de artistas e trabalhadores da indústria musical que acreditam ser empreendedores da música tentando tirar algo dessas ondas tecnológicas. Mas o mercado financeiro funciona, essencialmente, na base da desigualdade. Isso é um ponto. E vende a ideia de que só não prospera quem não se esforça o bastante. O Daniel Ek (CEO do Spotify), durante a pandemia, deu uma entrevista dizendo que os músicos tinham que parar de ser uns vagabundos que lançam discos a cada três anos e apostar em singles a cada mês. O Spotify For Artists, plataforma deles para criadores, é um mercado de ações, um homebroker: você olha ali quanto e quando valoriza o seu produto. Se se desvaloriza, você gera outra “ação”: um single, uma polêmica, uma nova conversação pra ter visibilidade. A Anitta é a artista que mais sabe no Brasil trabalhar com isso, mas nem todos sabem. É aí que se manifesta a desigualdade do mercado, que sempre existirá.

A inteligência artificial generativa, outro dos grandes temas para este ano e os próximos, apresenta um desafio bem prático: tentar pôr um fim, ou ao menos um freio, no uso indiscriminado de conteúdos protegidos por copyright para gerar seus sistemas. Em outras palavras, garantir que os autores dos textos originais varridos pelos softwares ganhem algo com isso. Até agora, temos visto, de um lado, as bigtechs fingindo que não é com elas e, de outro, o Estado, sobretudo em lugares como a Europa, tentando criar leis que protejam os autores humanos. O que esperar dessa disputa no curto prazo?

Você descreveu bem as posições. O que acho interessante nesse cenário é a percepção, por parte das associações de classe que defendem os criadores, de que o Estado tem que estar aí para defendê-los. Porque, de fato, a única entidade capaz de deter a exploração sem limites de dados é o Estado, em discussão com a sociedade civil. Fala-se muito em tecnologia, mas muito pouco no que as sociedades querem da sua música. Queremos ouvir mais do mesmo? Ou manter a criatividade como valor central nas sociedades modernas? O que está em jogo é o próprio conceito de criatividade. Do ponto de vista dessa batalha por garantir que suas criações sejam pagas, e não usadas livremente, você precisa ter a união dos artistas. E, no mercado de música, isso é mais difícil do que no audiovisual, precisamente por ter baixa barreira de entrada, o que cria um conjunto menos homogêneo de pessoas. A classe precisa entender o que quer. Não se trata do Estado mau contra a bigtechs inovadoras. Trata-se de certos estados lutando contra o colonialismo de dados que são feitos por bigtechs, mas que têm por trás outros estados. Ou você acha que os Estados Unidos, terra da Apple, da Amazon etc., não tem um papel decisivo de manutenção do seu poder através das bigtechs? Esta é uma grande luta geopolítica, e os autores são pequenos comparados com esses gigantes. Mas precisam se organizar e se fazer ouvir.

Como o Brasil está posicionado nesse debate?

No início do século XXI, o Brasil estava numa posição privilegiada para debater esses temas: havia boas cabeças que traziam ideias novas. Todo aquele pessoal do software livre, por exemplo. E muita gente que acreditava que deveríamos desenvolver nossas plataformas informáticas nacionalmente. Havia uma política de informática desde os anos 1970 e 1980. A partir da década de 2010 isso se perde, e a gente escolhe se abrir para o mercado global das bigtechs, em vez de perseguir construir um mercado fonográfico digital local. Isso tem um preço: você importa problemas do modelo estrangeiro, afeta o debate local sobre direitos autorais, direitos de dados. Vejo com preocupação como as leis que tramitam agora, entre elas o Marco Civil da Inteligência Artificial, são discutidas. Porque essencialmente não abordam a nossa dependência total das bigtechs para armazenar nossos dados, nossas experiências nas plataformas de streaming, nas redes sociais… em resumo, nossa própria memória cultural coletiva recente. O Uruguai é um exemplo do que acontece quando você desafia uma bigtech dessas: por lei, implantou o pagamento de direitos conexos, e o que aconteceu? O Spotify se retira de lá, levando junto consigo, para seus servidores na nuvem em outro país, toda a música que artistas locais subiram nos últimos anos. É a memória cultural do Uruguai que eles levam embora.

Para um servidor qualquer na Suécia…

Nem sequer está na Suécia. O poder das bigtechs é tal que elas flutuam entre estados de uma maneira mais ou menos livre. O Spotify pegou um dinheirão da Suécia enquanto se desenvolvia, porque é uma marca forte, um signo do soft power sueco. Mas depois, quando decidiu que era mais barato pagar impostos na Inglaterra, se foi da Suécia. Mantém sua sede social em Estocolmo, mas a operação é na Inglaterra. É o símbolo do livre mercado… um mercado que, claro, só é livre até a página 5. Os Estados Unidos, por exemplo, adoram livre mercado só enquanto são os donos dele. As empresas de lá funcionam com apoio sistemático do Estado. Mariana Mazzucato, economista italiana radicada na Inglaterra, descreveu num livro seu com perfeição como Apple e outras enormes corporações dependem do estado americano. Livre mercado é bom só quando as empresas deles querem entrar no nosso mercado. O contrário não. Não é por outra razão que estão loucos com a China, querendo controlar e até expulsar o TikTok.

A capa do livro

Outro tema meio constante quando se fala em plataformas de streaming, e que deve continuar por aí este ano, são os algoritmos de recomendação. Fizemos um bom debate sobre esse tema no site da UBC, com opiniões muito diferentes em relação às dores e delícias dos algoritmos. O que pensa sobre isso?

A saturação de informação é um dos grandes problemas da sociedade. Nos anos 90, havia uma teoria de que sociedade global se tornaria mais civilizada e avançada porque todos teriam acesso à informação. O que descobrimos é que não só a falta, mas também o excesso de informação levam à ignorância e à barbárie. A melhor maneira de encontrar informação, hoje, é através dos algoritmos de recomendação. Ajudam a entender critérios de interesse e nos fazem acessar informação importante. Sem eles, hoje, num mundo repleto de informação, não viveríamos.

Então, qual o negócio de fato do streaming? Seu conteúdo amplíssimo de 80 milhões de músicas? Não. O negócio deles é o sistema de recomendação automatizado, que dá segurança em meio ao excesso de informação. Uma boia para alguém que se afoga. São inevitáveis. Agora, o grande debate é: quais são os critérios usados pra programação desse sistema? A sociedade tem direito de saber. Hoje, o streaming é a principal fonte de acesso à memória musical e às novidades. Eles definem quem vai ganhar mais ou menos dinheiro. Tem jabá digital, mas também tem programação que lembre de pessoas irem buscar artistas antigos e quase esquecidos. Tudo é a programação. Esse é o elemento central da discussão. Difícil colocar às empresas privadas demandas sociais que vão contra a sua lógica de lucro. Enquanto forem únicas opções, nós, consumidores, temos que jogar segundo suas regras. São remédio e doença ao mesmo tempo. A questão é a dose.

 

LEIA MAIS: Reportagens da UBC recentes sobre alguns dos temas abordados pelo pesquisador na entrevista:

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