Texto prevê que a disponibilização se limite a casos de suspeita de uso sem autorização; mesmo assim, indústria apoia em peso a iniciativa
Por Ricardo Silva, de São Paulo
O edifício do Capitol, que abriga o Senado e a Câmara dos EUA, em Washington. Foto: Shutterstock
Um projeto de lei apresentado por um senador democrata nos Estados Unidos vem sendo elogiado pela indústria musical e cultural e apontado como um caminho possível para o grande imbróglio que envolve o uso de obras protegidas por direitos autorais para treinar sistemas de IA generativa. Chamado de Lei de Transparência e Responsabilidade para as Redes de Inteligência Artificial (que, em inglês, gera o acrônimo TRAIN, ou treinar), o PL criado pelo legislador Peter Welch (Vermont) prevê que qualquer autor que suspeite do uso de suas obras possa solicitar às empresas de IA que forneçam os metadados de treinamento.
O texto prevê uma clara limitação para esse tipo de solicitações: só poderiam ocorrer caso o detentor de direitos declarasse ter uma “crença de boa-fé” de que sua obra foi usada. Não se trata de um fornecimento de metadados amplo e geral, algo a que se opõem as empresas de IA, sob a alegação de que seria custoso e “impossível” disponibilizar as origens de zilhões de informações com as quais os sistemas vêm sendo alimentados desde sua criação.
“É simples: se sua obra for usada para treinar IA, deve haver uma maneira de você, como detentor de direitos autorais, verificar isso e ser compensado, se for o caso”, disse Welch em nota enviada à imprensa. “Precisamos dar aos músicos, artistas e criadores dos EUA uma ferramenta para descobrir quando empresas de IA estão usando suas obras sem permissão. À medida que a IA evolui, devemos estabelecer padrões mais altos de transparência”, completou o senador, chamando o modelo de treinamento atual de “caixa preta”.
Além da previsão de um fornecimento limitado dos dados de treinamento aos casos em que haja uma desconfiança real sobre o uso de material protegido, o projeto tampouco prevê pagamento aos autores das obras mineradas pelos sistemas. Para isso, corre no Legislativo americano outro projeto de lei, mais amplo e ambicioso, o chamado COPIED, sobre o qual falamos aqui no site da UBC em julho passado. Pelo COPIED, que uniu os partidos Democrata e Republicano — em quase todo o resto antagonizados nestes tempos de alta polarização —, ficaria proibido o uso de obras protegidas sem autorização e/ou remuneração, e uma marca d’água para reconhecer conteúdos protegidos deveria ser incluída nos metadados de treinamento.
Mesmo com um alcance mais limitado, o projeto TRAIN é apoiado e vem sendo celebrado pelas três maiores gravadoras do mundo, Universal Music, Sony Music e Warner Music, além de entidades como as sociedades de autores Ascap e BMI, a Associação Americana da Música Independente (A2IM), a Associação da Indústria Fonográfica RIAA, a entidade dos editores musicais NMPA e a sociedade de direitos conexos SoundExchange, entre várias outras.
Muitas dessas empresas e entidades estão envolvidas atualmente em processos na Justiça dos Estados Unidos e de outros países contra o uso massivo das obras musicais de seus associados ou contratados. Em diversos desses processos, as empresas que desenvolvem IA generativa alegam que a inclusão das obras protegidas nos sistemas de treinamento se insere dentro do “uso justo”, uma figura jurídica prevista no arcabouço jurídico americano quando há propósitos educativos — o que não é o caso, já que as grandes empresas de IA generativa têm, sem exceção, finalidade de lucro.
Ambas as leis, se aprovadas, portanto, reforçariam o argumento dos criadores humanos e trariam um marco jurídico padrão para embasar as decisões judiciais sobre o tema.
Sobre o alcance limitado do fornecimento de informações apenas a quem garanta pensar que suas obras foram usadas, a maioria das entidades que se pronunciaram sobre o projeto de lei TRAIN parece ter adotado o mesmo tom: é o que tem para hoje.
“O projeto de lei do senador Welch, cuidadosamente calibrado (entre os interesses dos criadores humanos e das empresas de IA), trará a transparência tão necessária à IA, garantindo que artistas e detentores de direitos tenham acesso justo aos tribunais quando suas obras forem copiadas para treinamento sem autorização ou consentimento”, disse Mitch Glazier, presidente da RIAA, num comunicado obtido pela UBC.
Os presidentes e diretores-executivos da Ascap e da BMI foram na mesma linha:
“Ao exigir transparência sobre quando e como obras protegidas por direitos autorais são usadas para treinar modelos de IA generativa, o PL TRAIN abre caminho para que os criadores sejam justamente compensados pelo uso de seu trabalho. Em nome de mais de um milhão de membros da ASCAP, incluindo compositores, autores e editores musicais, aplaudimos a liderança do senador Welch”, afirmou Elizabeth Matthews, da Ascap.
Já Mike O’Neill, da BMI, chamou o projeto de “um passo na direção certa”:
“Ele fornecerá uma via legal para que os criadores de música possam obrigar essas empresas a divulgar as informações, o que será um passo na direção certa, por uma maior transparência e responsabilidade.”
No Brasil, também há debate no Legislativo sobre o tema, com diversas propostas condensadas no PL 2338/2023, que tramita atualmente numa comissão especial no Senado. Este mês, a UBC, a Pro-Música Brasil e o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) foram algumas das 30 entidades que assinaram uma carta enviada ao senador Eduardo Gomes, relator do projeto. Nela, alertam para o perigo de que um substitutivo recém-apresentado deixe de fora a proteção aos direitos autorais de compositores musicais, escritores, intérpretes e titulares de obras artísticas, intelectuais e jornalísticas em geral, amplamente usadas no treinamento dos sistemas de IA generativa.
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