Dona da Ticketmaster conversa com Spotify, Apple e Amazon para ceder ingressos às plataformas, que estão prestes a lançar planos mais caros
Por Ricardo Silva, de São Paulo
A indústria colocou o foco total no superfã — aquele disposto a pagar mais por produtos e/ou serviços exclusivos vinculados com seus artistas favoritos. Tudo para capitalizar e aumentar as receitas da música nos próximos anos. E as plataformas de streaming já se mexem para criar planos “superpremium” para esses fãs, que terão suas assinaturas aumentadas em troca de uma experiência mais “profunda” de conexão com os artistas. Segundo a imprensa especializada, o Spotify, por exemplo, está prestes a lançar seu chamado plano “Music Pro”, que poderia ter um valor extra de cerca de US$ 5 (R$ 28,6). Apple Music e Amazon Music também avançam nesse sentido. A surpresa aqui é o que todos eles estariam costurando para oferecer como grandes “bônus” para os fãs: o acesso a pré-vendas exclusivas para shows.
A Live Nation, produtora de shows e controladora da Ticketmaster, a maior das empresas globais vendedoras de entradas (conhecidas também como tiqueteiras), confirmou estar em conversas com as “três grandes” do streaming ocidental para fornecer a elas ingressos exclusivos, que seriam usados como armas para atrair assinantes para seus planos superpremium.
“Nossa função é utilizar o estoque de ingressos que adquirimos dos artistas e maximizá-lo com patrocínios. Atualmente, temos muitos programas de pré-venda em vigor com empresas como Verizon, Citibank etc.”, disse Michael Rapino, diretor-executivo da Live Nation Entertainment, durante uma conferência sobre os resultados financeiros da empresa, realizada semana passada. “Na rodada mais recente, Spotify, Apple e Amazon nos procuraram. Conversamos com todos sobre ideias para a obtenção de ingressos. Isso tem um custo, e consideraríamos essa opção se fizesse sentido para nós em comparação com outras alternativas de pré-venda, já que este é um ativo muito valioso.”
As palavras dele não poderiam ser mais claras: grandes tiqueteiras estão dispostas a oferecer ingressos para pré-venda às plataformas de streaming. Mas deverão cobrar um preço alto por isso. Num mundo pós-pandêmico em que os shows ao vivo não só se recuperaram mas superaram amplamente as cifras de 2019 — com um crescimento de mais de 21% só no ano passado em execução pública, segundo a Cisac —, o poder das empresas que produzem e vendem entradas para esses eventos só faz crescer.
TIQUETEIRAS CADA VEZ MAIS QUESTIONADAS
Ao mesmo tempo, crescem também as sombras sobre essas companhias, frequentemente acusadas de impor a artistas e produtores preços e condições que prejudicam, por exemplo, a música independente. Somadas a isso, é comum também a percepção de que há pouca transparência nos critérios de cessão de ingressos para pré-venda, o que deixa muitos superfãs particularmente frustrados.
“No ano passado, 151 milhões de fãs compareceram a eventos da Live Nation, um aumento de 9% em relação a 2023. Desse total, 60 milhões participaram de shows realizados em locais operados diretamente pela empresa. O poder dessas empresas já é enorme. E aumenta sem parar”, descreve o analista musical Stuart Dredge. “O crescimento das receitas da Live Nation ano passado foi moderado (1,9%), mas totalizou US$ 23,16 bilhões (R$ 132,7 bilhões). Mesmo assim, Rapino está otimista. Ele afirma que 2024 foi o melhor ano da história da música ao vivo, e o lucro operacional da sua empresa foi significativo, de US$ 2,15 bilhões (R$ 12,32 bilhões), com alta de 14,1%. A empresa já vendeu 65 milhões de ingressos para shows da Live Nation este ano, um crescimento de dois dígitos em relação ao ano anterior.”
Segundo a própria Live Nation divulgou num comunicado, “a atividade em shows de estádio no segundo e terceiro trimestres deve ser o principal motor de crescimento para 2025.” E este, para alguns especialistas, é o xis da questão. No segundo semestre do ano passado, como mostramos aqui no site, a Ticketmaster era a única fornecedora de ingressos para 82% dos anfiteatros de maior bilheteria e 78% das arenas de maior bilheteria nos EUA. Havia uma única grande cidade do país sem um megalocal da Live Nation, Portland, e a população estava se manifestando contra a chegada da empresa à cidade por medo de que isso arruine a cena independente local.
Com o público migrando em massa para os megaeventos — shows para dezenas de milhares de pessoas em estádios; festivais gigantes com atrações que oferecem não só música, mas “experiências” —, não há como a música independente não sofrerl. A lógica é simples: por muito que existam superfãs e gente disposta a gastar com música, não há poder aquisitivo que banque um ecossistema com tantos shows ao mesmo tempo.
Como a UBC noticiou em janeiro, o governo britânico, preocupado com o tema, decidiu taxar os megashows para financiar os pequenos palcos, que não param de fechar no Reino Unido. Uma medida apoiada por especialistas como Leo Feijó, diretor da Escola Música & Negócios, da PUC-RJ, e mestre em empreendedorismo com ênfase no setor musical pela Goldsmiths, Universidade de Londres.
“A decisão do governo britânico foi histórica e reconhece, finalmente, a relevância das casas de shows de médio e pequeno porte para o ecossistema da música. Algo que a própria indústria de concertos ao vivo, a indústria fonográfica e as plataformas de streaming não fizeram - ainda que sigam lucrando com novos talentos que só existem por conta do circuito de casas. No Brasil essa discussão ainda está muito embrionária”, afirma Feijó, que disse ter apresentado “informalmente” a adoção de medida semelhante à do governo britânico à direção da Funarte, durante a última edição da feira de música Womex, que aconteceu em outubro na Inglaterra. “A discussão se faz num contexto de criação da Agência Nacional da Música, proposta na Conferência Nacional de Cultura.”
APOSTA NOS MAIORES
Apesar de, como ele menciona, o streaming se beneficiar dos novos talentos, é nos grandes do mainstream que as plataformas apostam para aumentar seus ganhos. Frequentemente, Spotify e companhia são acusados de beneficiar os mais famosos artistas do showbiz internacional em suas playlists, tanto editoriais como algorítmicas.
“É como um ciclo se fechando. As plataformas impulsionam a música e os gêneros de massa. Agora, buscam ingressos exclusivos para esses mesmos megaconcertos como bônus para os pacotes premium destinados aos superfãs. É uma lógica de mercado legítima, mas asfixiar a música independente ou de fora dessa visão mais mercantilista pode não ser uma boa ideia para a própria sobrevivência de longo prazo da indústria”, diz a advogada e analista musical Elaine Brandão.
O diretor-executivo da Live Nation, durante a conferência dos resultados financeiros da empresa, destacou algo que corrobora o que ela pontua. Ao comentar as conversas com Spotify, Apple Music e Amazon Music sobre eventuais acordos para lhes ceder ingressos de pré-venda, Rapino mencionou alguns dos maiores do mainstream como exemplos dos nomes nos quais as plataformas estariam interessadas:
“Todos querem a Beyoncé ou o Coldplay. Mas isso é difícil. Há um problema de escala, não há ingressos de pré-venda para todo mundo."
Ele avaliou que os ingressos para pré-venda deverão ser mesmo as principais armas iniciais dos tais planos superpremium, já que outras eventuais atrações aventadas por analistas para figurar nesses pacotes, como lançamentos musicais exclusivos ou eventos pequenos do tipo meet and greet entre fãs e artistas, são ainda mais difíceis de realizar em escala industrial. A faca, o queijo e o disputado chamariz para os superfãs parecem estar mesmo, por enquanto, nas mãos das tiqueteiras.
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